domingo, 20 de setembro de 2020

Scorpions — "Blackout"

 "I really had a blackout"

Vai fechar o Crobar, o último dos resistentes em Soho. Um bar fiel às suas raízes motards e metaleiras que nunca mudou, cruzando décadas de gentrificação e trendificação do bairro do Soho, sempre imune a tudo. Agora é mais uma das vítimas de 2020. Dave Grohl, Slash e o Alice Cooper eram fãs desta casa lendária, mas duvido que algum deles tenha uma história lendária como a minha primeira noite no Crobar — a noite do Blackout.

O ano era 2018 e numa sexta-feira à noite, já a bater nas 24 horas, recebo uma chamada do Diogo, um amigo que trabalhava como bartender em Soho: "Nuno, vamos aí dar um giro!", diz ele. Eu respondo que nem sequer tinha ainda jantado, tal era o nível de exaustão que trazia da semana que terminava. Tinha chegado a casa umas horas antes e deste então que estava estatelado no sofá, a destilar o stress do trabalho. Mas o Diogo insiste: "Não te preocupes, eu tenho aqui jantar para ti no pub". Bem, sendo assim, não havia desculpa. Borrifei-me com perfume, para disfarçar a roupa usada e pus-me a caminho, já passava da meia noite.

Quando cheguei ao Soho, já o Diogo estava a fechar o pub onde trabalhava. "Onde é que está a comida?!", perguntei eu já cheio de fome (sublinho aqui que a última coisa que tinha comido fora uma sandes ao meio-dia, 12 horas antes, portanto). Ele sorri e exclama "Toma aí!", enquanto me passa para a mão... um gin tónico. Eu nem sequer bebo gin, mas para além do estômago vazio, também já trazia sede, por isso foi tudo de enfiada. "Então onde é que vamos?", perguntei eu já com o gin a bater. "Vamos a uma casa que vais adorar!", responde o Diogo. Eu torci o nariz. 

Deixem-me falar-vos da noite de Londres — é uma merda. Amo Londres, mas para onde quer que vá, pareço sempre ser mergulhado num bidão de plástico liquidificado. É tudo tão fake, tudo tão estacionário, que nunca consegui apreciar a noite londrina como apreciava, por exemplo, a noite lisboeta. Mas o Crobar era diferente. Gente verdadeira, untrendy, zero fucks given. Senti-me imediatamente em casa.

As minhas melhores histórias na noite londrina sempre aconteceram em sítios e situações inesperados — como aquela vez que, sem fazer a menor ideia, entrei numa discoteca gay, fui dançar para a pista e, bem, o melhor é deixar essa história para outra altura. Chegados ao Crobar, numa curta viagem da qual já tenho memória difusa, junta-se mais um grupo de amigos do Diogo. "Round of shots!", grita um deles. A partir daqui, bem, já devem imaginar. Estômago vazio, gin tónico para jantar, seguido de quatro ou cinco (who's counting?) rodadas de shots de tequila. Curti à brava o Crobar.

Quando fomos despejados às 3 da manhã — hora de fecho do bar —, eu sentia-me como o (a) protagonista do vídeo do "Smack My Bitch Up" — visão em túnel e o túnel a rodar como uma mangueira solta a alta pressão. "Diogo, agora tenho mesmo que comer", supliquei-lhe. Ele fez-me finalmente a vontade. Só que de todos os restaurantes em Soho, levou-me para um restaurante chinês. Ora, eu não propriamente fã da cozinha do Extremo Oriente e passado 5 minutos de estarmos sentados, corri para a rua para e, como já era mais do que esperado, despejei o que tinha no estômago.

O problema é que já não podia voltar para dentro. Estava em modo super spinning e sem dizer mais uma palavra, deixei o Diogo e liguei automaticamente o Safe Mode — o modo de segurança em que o único objectivo é chegar a casa, custe o que custar. Chamar um Uber? Não, o metro é mesmo ali e são só 5 estações. E aí sim, começou a minha aventura.

Cheguei ao metro e estava tão quentinho e confortável, que disse para mim "vou só fechar os olhos um minuto". Quando esse minuto passou e eu voltei a abrir os olhos, estava em Heathrow. "Fuck. Vou ter que andar tudo para trás", pensei. Mudei de linha e lá fui eu em direcção a Earl's Court. Era supostamente uma viagem de 45 minutos, mas os olhos pesavam e quando acordei, já estava na outra ponta da Piccadilly Line. Nem queria acreditar.

Voltar a mudar de linha aqui já foi um suplício de arrastar ossos indizível. De alguma maneira, encontrei forças para entrar em mais uma carruagem do metro. Seria a última. Mas a viagem estava longe ainda de terminar. Sabia que tinha a linha toda ainda pela frente e por isso, não faz mal nenhum dormir mais um bocadinho, certo? Errado, pois claro. Quando acordei, estava em Hounslow Central, novamente quase ao pé de Heathrow. Fiquei a morrer. 

Tentei recompor-me e pensar na viagem que tinha ainda pela frente — sair em Hounslow West, mudar de linha e voltar para trás em direcção a Earl's Court. Qual não é o meu espanto quando a senhora do Tube anuncia: "Next station, Hounslow East". "Oi? Hounslow East? Então eu já vou em direcção contrária?". Ou seja: o metro já tinha ido a Heathrow e já estava a voltar. E eu sempre a dormir na carruagem. Vá lá que o condutor teve pena da cena e me deixou a dormir no comboio.

A partir daí, não mais fechei os olhos. Cheguei a casa às 9 da manhã. Foi a minha primeira noite no Crobar.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

George Michael - Listen Without Prejudice 30

"And if these wounds, they are self inflicted. I don't really know how my poor heart could have protected me" 

Nestes dias, sempre que decido escrever sobre um dos meus heróis, sinto que já não tenho mais nada a dizer sobre ele. Não admira. O blog já tem 10 anos e já escrevi (quase) tudo o que tinha para escrever sobre os artistas que marcaram, mudaram e salvaram a minha vida. Não resta nada, penso sempre.

Até que acontece um dia como este, um dia que o meu saudoso avô Artur chamaria sabiamente de um "dia de um filha da puta", um dia em que tudo corre mal, tudo sai ao contrário. Chego a casa com a cabeça em papa, abro o Facebook e vejo que faz hoje exactamente 30 anos que foi lançado o meu álbum favorito de 1990 — "Listen Without Prejudice Vol.1". Nem de propósito, era mesmo este o disco que eu precisava de ouvir. E tal como aconteceu em tantos outros momentos da minha vida, o George apareceu outra vez. Sempre para me salvar o coiro. Sempre quando mais precisava dele.

É por isso que amo o George. Ele esteve lá sempre que eu precisei e a única coisa que pediu em troca foi um pouco de atenção e que eu lhe fosse comprando os (poucos) discos que ia lançando. Nunca lhe faltei com a minha parte.

"Listen Without Prejudice Vol.1" é um álbum pivotal na vida do George. Marca a sua passagem de artista mercantilizado como sex symbol, de boy toy, para o que ele achava ser um artista sério.  George queimou as suas roupas no clip de "Freedom '90" e deixou de aparecer nos próprios vídeos. George já tinha tido a sua Beatlemania e queria agora o seu Imagine. E tal como John, George buscou a sua afirmação artística na procura pelas emoções mais viscerais, na aposta na estética minimalista e adicionou-lhe infusões de Jazz e Bossa Nova que atiraram o álbum "Listen Without Prejudice Vol.1" para um patamar de excelência raramente alcançado na Pop. Não admira que o público americano não o tivesse compreendido.


(Review hilariante do álbum Older, a pedir o George de Faith de volta. Em suma, gente que não gosta do George.)

Lançado a 3 de Setembro de 1990, "Listen Without Prejudice Vol.1" foi um sucesso no UK, onde vendeu ainda mais cópias que "Faith". No US, foi um suicídio artístico. Quem é que o George pensava que era? Armado em Bob Dylan, ou Leonard Cohen? O público americano conhecia o George de calças de ganga, casaco de pele e crucifixo na orelha esquerda e queriam mais. Mas o George estava mais preocupado em ser levado a sério. Sempre demasiado preocupado com o que os outros achavam dele, o nosso George. As putas das inseguranças que o atemorizavam e que o levaram daqui. E que ele deixou tão explícito no tema de fecho do disco, "Waiting (Reprise)": "All those insecurities that have held me down for so long, I can't say I've found a cure for these, but at least I know them, so they're not so strong.". Ninguém escrevia sobre inseguranças como tu, George. Que saudades.

"Please be stronger than your past, the future may still give you a chance"

Fiquem, pois, com um cheirinho late night da obra-prima maior da carreira do George, última faixa do Lado A de LWPv1 — "Cowboys And Angels":


P.S.: Tenho há anos em rascunho um post sobre o nunca lançado "Listen Without Prejudice Vol.2", cancelado devido ao conflito do George com a sua editora, a Sony. Afinal ainda há mais umas coisinhas para escrever.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Peter Gabriel - "Biko"

“September 77, Port Elizabeth, weather fine. It was business as usual, in police room 619.”


Ando há uma semana com esta merda a fervilhar-me a cabeça. E como quem me segue saberá, quando fico a ferver, tenho a tendência para o vernáculo, por isso tendo a segurar-me.

Não sei se já viram o vídeo do New York Times com a reconstrução do assassinato de Minneapolis em multicam, a partir de vídeos de vários telemóveis (as coisas que a tecnologia nos proporciona). É hediondo. É um assassinato. Ponto. Da primeira vez que vi o vídeo, há uma semana, vi de um ângulo em que se via um polícia a pressionar a traqueia do George Floyd, enquanto este gritava pela mãe e dizia que não conseguia respirar. Fiquei nauseado com a frieza daquilo. Hoje percebi que afinal eram 3 animais em cima dele.

Todos foram (bem) despedidos no próprio dia, mas só o animal da traqueia foi detido “enquanto se averiguam os factos na investigação”. O NYT foi mais rápido que o tribunal e reconstruiu os factos num vídeo multicam. Entretanto, os outros animais continuam a monte. Não há democracia sem justiça e justiça tem que ser feita para George Floyd. Até lá, Minneapolis arderá. Compreensivelmente.

Por coincidência, ao mesmo tempo que isto acontecia, eu estava a ver um (excelente) documentário na Netflix sobre a guerra no Vietname (The Vietnam War - aconselho vivamente) que mostrava a revolução, os motins e as cidades americanas em chamas no verão de 1968, por causa da morte de MLK. Desligo o Netflix, mudo de separador e videos mostram-me uma cena exactamente igual em Minneapolis. Em 2020.

Serve de quê esta reflexão? Quem saiu a ganhar dos motins do verão de 1968? Um tal de Richard Nixon, boca sensação do Partido Republicano que prometia mão de ferro com os anarquistas. A classe média teve medo e votou nele.

Como vimos nesta alegoria, a história repete-se, por isso não excluam a reeleição de Trump por causa disto, por muito má que seja a sua conduta. Até porque do outro lado está um velho senil (não que ser um velho senil tenha algum mal, todos eventualmente lá chegaremos, se lá chegarmos) que nunca deveria ser candidato à presidência do US, muito menos nestas tão importantes eleições. Meu rico Bernie, que ias fazer a revolução do mundo livre e solidário. Mas isso, dizem-me, é fantasia. No mundo real, Trump já prometeu a intervenção do exercito (de armas os americanos percebem) e a classe média americana gosta disso.

Tudo se acalmará quando houver justiça. Todos os animais têm que ser prosecuted. O vídeo mostra uma frieza criminosa de todos os polícias presentes. Como não responder aos gritos de George Floyd? Who are these people? Eu gosto de estudar mentes twisted e se dá para “perceber” o train of thought do animal da traqueia, que alegadamente tinha simpatias supremacistas, que dizer do partner dele, chinês e também cúmplice? Isto ultrapassa o racismo, é de uma atrocidade indizível. NINGUÉM pode ficar indiferente a isto. Justiça para George Floyd precisa-se.

A banda sonora é providenciada por um dos meus heróis - Peter Gabriel - e o hino anti-racista dos anos 80 “Biko”, que conta a história de um homem assassinado numa esquadra na África do Sul, na altura do Apartheid. “It was business as usual” indeed, tal como em Minneapolis.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

10 Álbuns que influenciaram o meu gosto musical: #2 Pink Floyd - "Meddle" (1971)

#2 Pink Floyd - "Meddle" (1971)



Olha, olha. Que surpresa. O Nuno nomeou um disco dos Pink Floyd como um dos dez que mais influenciaram o seu gosto musical.
Antes que tome o gosto em falar sobre mim na terceira pessoa, interrompo-vos já esse revirar de olhos para vos dizer que pensei muito sobre qual dos álbuns dos Pink Floyd escolher para esta lista. A escolha lógica seria o "The Division Bell", que eu habitualmente cito como o meu álbum preferido de sempre; ou então o "The Dark Side Of The Moon", que eu habitualmente cito como o mais accomplished álbum de sempre. Mas o desafio em questão remete para as influências. Para como tudo começou. E se os Pink Floyd, para mim, começaram com Veneza em 1989 e continuaram em 1994 com o Division Bell, foi no ano 2000, quando saiu a compilação "Echoes: The Best Of Pink Floyd", que as comportas para a discografia da banda de Cambridge se abriram. E tudo girava à volta de um tema que era muito mais que um tema. Um tema que era uma vida. Um tema que no disco original em vinil, tomava todo o Lado B. Um tema que representava, melhor do que nenhum outro, tudo aquilo que eram os Floyd. E que por isso mesmo dava nome à primeira compilação que se atrevia a resumir a sua extensa e expansiva discografia num único álbum, orfanando os temas dos seus álbuns-mãe. Falo, obviamente, de "Echoes", o tema que ocupa o Lado B do álbum "Meddle", de 1971.

Nao é bem saudades. O que eu tenho mesmo é inveja do 15-year-old-me, que sem saber, estava numa viagem épica a descobrir toda uma avalanche de sons que nunca tinha ouvido. Estava pela primeira vez a descobrir música por mim próprio e era um sentimento de liberdade incomensurável. Quem me dera sentir-me assim outra vez. Quem me dera voltar sentir o que senti das primeiras vezes que ouvi o "Echoes". O fascínio. O bewilderment. Foram meses a tocar aquilo no meu quarto e no meu Discman em loop. Como eram 25 minutos, nunca cansava.

Estava a apanhar as primeiras bebedeiras e quando chegava a casa do Telheiro (o bar da moda em Castelo Branco) no fim da noite de Sexta-Feira, punha o CD do "Meddle", fast forward para a última faixa e deitava-me na cama a olhar para o tecto e a submergir-me na música. A minha imaginação voava sobre rios e desertos e desfiladeiros á noite, enquanto ecoava a guitarra do David. O mistério. O que era aquilo? Como é que o David fazia aqueles sons? Apaixonei-me pelo som daquela guitarra (ou vá, foi uma terceira lua-de-mel, depois de 1989 e 1994) e 20 anos depois, a paixão continua intacta.

Desde então, segui a guitarra o David sempre que pude e para onde pude. Tive o privilégio de o ver em Paris, a tocar os 25 minutos do "Echoes" com o Richard Wright. Continua a ser um dos momentos altos da minha vida.
A minha namorada da altura, que me acompanhava no concerto, deixou-se dormir na parte psicadélica do "Echoes". E não, não estava com os copos.

O "Echoes" mudou por completo a forma como eu olhava para a música. O conceito de canção podia agora tomar qualquer forma e qualquer duração. Tao válidos eram os 2 minutos de "Love Me Do", como os 25 de "Echoes", cada qual no seu contexto. A paciência compensava. É este tema, que na verdade é muito mais que apenas um tema, que o álbum "Meddle" aparece nesta lista.
Vem esta epifania a propósito da estreia no YouTube do filme "Live At Pompeii" que, na sua versão original, abre e fecha com "Echoes", contando ainda com o outro épico de "Meddle" - o instrumental "One Of These Days". Foi o filme que mudou a minha vida e fez de mim o weirdo que sou hoje.

Para ilustrar o "Meddle", deixou aqui apenas algumas das versões do álbum que constam na minha colecção (são 10 no total). Em baixo, as prensagens alemã e portuguesa, com a qual eu cresci, ouvindo-a esporadicamente no record player do meu Pai (estes não são os Floyd preferidos dele).
Em cima, a prensagem dourada da MFSL em CD, um dos items mais  preciosos da minha colecção. Mas ainda e muito mais precioso, é o que está atrás — uma 1st pressing UK, com os primeiros matrix numbers A-1U / B-1U, assinada pelo David Gilmour himself. Claro que o sonho era reunir as assinaturas do Roger e do Nick por cima das respectivas cabeças, mas acho que isso é tão provável como a reunião dos próprios em palco.

terça-feira, 21 de abril de 2020

10 Álbuns que influenciaram o meu gosto musical: #1 David Bowie - "Low" (1977)

«Escolher 10 álbuns que influenciaram o meu gosto musical. Um álbum por dia durante 10 dias consecutivos. Sem ordem cronológica, sem explicaç... 

Ah fuck it. Claro que tem que haver explicações, senão what’s the fucking point?
Bem. Depois de ter sido nomeado 3 vezes para entrar nesta corrente do Facebook, vou aceitar o desafio. Mas como isto é Rock’n’Roll, you gotta break the rules, e por isso, sim, vai haver explicações, não, não vão ser só capas de álbuns e não, não vou nomear mais ninguém. The madness stops here.
Também não vai ser só no Facebook. Vou aproveitar para fazer uma coisa que não faço há muito tempo, que é escrever no meu blog. No blog que começou tudo há 10 anos (o banner também está actualizado) e que entretanto foi esquecido para dar lugar a outros projectos. Mas como dizia o David, "where you start is where you end" e por isso aqui estou de volta. Vamos a isto.

Notem que "10 álbuns que influenciaram o meu gosto musical" não são os meus 10 álbuns preferidos, nem os 10 melhores álbuns de sempre. São os álbuns que, errh, influenciaram o meu gosto musical. Agora sim, bora.

#1. David Bowie — "Low" (1977)


Começamos então com “Low”, um álbum absolutamente pivotal na minha vida. Foi um disco que entrou na minha vida, como sempre acontece com a música, no momento certo. Estava saturado do meu quotidiano day-in-day-out (pun intended) de casa-trabalho-casa, recentemente fora de uma longa relação e a precisar desesperadamente de descarrilar, em nome da minha sanidade mental. Parece paradoxal, eu sei. Mas a fazer aquela vida certinha, eu sentia que eu não era eu. Sentia a necessidade de olhar para o abismo.

Não, esperem aí. Esse álbum foi o “Station To Station”. Pois. É um tópico para outro dia. Esse também poderia perfeitamente figurar aqui. Mas em vez da masterpiece cocainada do Bowie, decidi em favor do “Low”, o álbum concebido na ressaca desse mesmo ‘high’ (mais um pun intended) e que entrou na minha vida quando ela entrou em paralelo à vida do Bowie (menos a cocaína, atenção).

A influência do Bowie, e do "Low" em particular, foi tal, que às tantas fiquei obcecado com a ideia de emigrar para Berlim, para 'renascer' tal como Bowie fizera em 1977. Mas isto não foi uma daquelas conversas que nascem com um copo de whiskey na mão. Não. Eu fui mesmo ter aulas de alemão e ao fim de 6 meses apanhei um voo para Berlim, onde estive sozinho durante duas semanas para apanhar o ar da cidade. Era Fevereiro e por isso apanhei um ar bastante frio. Demasiado frio para quem só tinha levado t-shirts e um casaco de cabedal, com quem entretanto estabeleci uma ligação metafísica que na altura descrevia como "uma extensão do meu corpo". Mas divago.

A epifania de "Low" estava na certeza da validade da reinvenção, da regeneração do indivíduo. Eu podia perfeitamente não ser aquilo que estava predestinado para mim. Não precisava de ser o certinho. Percebi que o sucesso não era (nem podia ser) uma prisão, tal como o David Bowie não precisou de continuar a ser o Ziggy para continuar a ter sucesso. Percebi que não precisava de ser igual aos outros nem igual a nenhum modelo, tal como o Bowie deixou de ser o Ziggy e passou a ser o Thin White Duke e depois deixou de ser o Thin White Duke para passar a ser só o David Bowie e em nenhuma das iterações foi igual a mais ninguém. A semente do "Low" cresceu 'high' (mais um pun, estou on fire).

O "Low" é conhecido academicamente por ter sido o primeiro álbum de Rock 'alternativo', uma vez que o Bowie bebeu as influências alemãs do Krautrock e foi o primeiro artista mainstream ocidental a fundir a electrónica com o Rock. Eu não sou propriamente um gajo do dubstep e do minimal (correntes electrónicas vigentes em Berlim no momento), mas imaginem, o meu álbum preferido do David Bowie é o "Low". E foi o vinil que ouvi mais vezes na vida. Muitas garrafas de Jameson foram despejadas ao som "Always Crashing In The Same Car", a discutir geopolítica e geoestratégia económica e sentimental.

Para ilustrar este life-changing album, ficam uma foto com a minha colecção do "Low".
Em cima, à esquerda, o tal disco que terraplanei de tanto ouvir nas sextas-feiras à noite. Uma 1st UK pressing de orange label, que comprei por 7 euros e meio numa pawn shop em Bruxelas, imaginem. Na altura estava impecável, hoje nem tanto. E por isso mesmo, à direita está uma back-up copy da mesma primeira prensagem UK que só ouvi uma vez, mas que comprei porque nunca se sabe, não posso correr o risco de não ter um "Low" à mão se me apetecer encher um copo com Jameson. Continuo a ouvir a cópia terraplanada porque tem resquícios de Jameson nos grooves e acho que isso dá uma dimensão de realismo tridimensional ao álbum. Ah e a back-up copy ainda tem o panfleto para aderir ao fan club do David Bowie em 1977. Não mandei porque achei que já era capaz de ser um pouco tarde para isso.
No meio, à esquerda, está a minha primeira cópia do "Low" em CD — a remaster de 1991 da EMI, com 3 faixas bónus também essenciais. À direita está aquele que foi provavelmente o CD mais caro que já comprei — a primeira prensagem do "Low" em CD, lançada na Alemanha Ocidental em 1984.
Em baixo, à esquerda, a remaster da RCA International de 1981 de green label que, curiosamente, tem sido a minha versão go-to nos últimos tempos. Tem um soundstage mais amplo e maior claridade, faltando aquela sujidade da orange label de 1977. Mas a verdade é que ultimamente tenho ouvido o álbum sóbrio. Deve ser isso.