sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Tears For Fears - "Laid So Low (Tears Roll Down)"

"What a fool I've been to have laid...
So low...
For so long...
SO LOOOOOOOOOOOOOW"



"Chewed the bone down too low"

Submissão. Às vezes acontece. Na procura de um cruzamento de interesses comuns, na perspectiva de uma reviravolta em busca de um horizonte mais risonho, por vezes numa luta interna contra a nossa própria idiossincrasia, somos levados à submissão. Não porque queremos, ou gostamos, mas porque achamos que isso é um passo rumo a um local mais feliz. Na esmagadora maioria das vezes não é.

"I was humble for you"

Cedência. O antecedente da submissão, o conceito de aparência virtuosa que nos convence a aceitar as regras do jogo impostas por outrem. Diz-se que para um relacionamento resultar (e não falo necessariamente de relacionamentos amorosos), é preciso ceder, ser humilde. É verdade. Mas isso por vezes desencadeia uma espiral de acontecimentos que resulta no conceito referido em cima.

"What a fool I've been to have laid so low"

Rotura. O resultado da epifania da submissão. Quando acordamos e percebemos que todas aquelas cedências que pensávamos que nos iriam transportar para esse tal lugar mais feliz, afinal, só nos rebaixaram ("sent your soul underground").


Nunca consigo ser parco em superlativos para os Tears For Fears. Atrás dos Queen e dos Pink Floyd, serão provavelmente a minha banda preferida, com um obra que, sem ser muito extensa, é de uma qualidade fenomenal. Para mim, são a banda mais subvalorizada (underrated) da História da música Pop/Rock. É "só" isto.
Muita dessa subvalorização se deve ao mega-sucesso dos singles "Shout" e Everybody Wants To Rule The World" (do álbum "Songs From The Big Chair"), que ofuscaram todo o restante trabalho dos Tears For Fears, largamente ignorado, devido à presunção que são uns meros one hit wonders. Longe, muito longe disso.

Os anos dourados dos TFF foram nos anos 80, época em que Curt Smith (a face alegre, voz doce da banda) e Roland Orzabal (a face soturna, o génio perturbado) lançaram 3 álbuns: "The Hurting", "Songs From The Big Chair" e "The Seeds Of Love". TODOS eles, álbuns fabulosos.
Saltando para 1990/1991 (noutra altura falarei sobre os anos 80 dos TFF), Curt decide abandonar a banda, em rotura (hint) com Roland e põe-lhe as culpas em cima. Orzabal oferecera muitas das partes vocais de Curt no álbum "The Seeds Of Love" a Oleta Adams (que fora "descoberta" por Roland num bar de hotel e assim lançada para uma carreira a solo de sucesso), atirando Smith para um plano secundário da banda. Para além disso, a busca obsessiva de Orzabal pelo perfeccionismo na produção tornava-se frustrante para Smith, que pretendia amenizar a carga de trabalho da banda, para se dedicar à família.

Em 1992, Roland Orzabal resolveu seguir em frente com a sua vida, agora a solo (hint),
mas mantendo o nome dos Tears For Fears. Assim, lançou "Tears Roll Down (Greatest Hits 82–92)", compilação que reunia todos os êxitos dos TFF nos anos 80, mais um tema novo: "Laid So Low (Tears Roll Down)".


"Laid So Low (Tears Roll Down)" foi assim lançado em Fevereiro de 1992 como single de promoção à compilação, atingindo sucesso muito moderado. "Laid So Low" é uma reformulação de "Tears Roll Down" - um Lado B do single "Sowing The Seeds Of Love" - que serviu de base para a criação deste tema.

Devido a esta criação "a dois tempos", "Laid So Low" congrega uma amálgama de intenções (nomeadamente em relação à infância difícil de Roland), mas é essencialmente um tema sobre rotura.
Cedência, submissão e rotura.
Neste caso concreto, é um tema sobre a rotura com Curt Smith. Segundo Roland, "so low" é um anagrama de "solo". E a verdade é que se a lírica for lida dessa forma, então tema ganha outro significado. Roland admite também a sua condição de solitário ("What a fool I've been to have laid solo..."). Admite, mas repudia-a.
O lamento de Roland no refrão, descreve o preenchimento do silêncio da solidão pelas suas próprias lágrimas:

"Into that void of silence, where we cry without sound... where tears roll down"

"Laid So Low (Tears Roll Down)" é um dos temas sobre rotura mais efectivos que conheço. Não necessariamente uma rotura amorosa, mas com certeza afectiva. É efectivo porque encarna a dureza da traição, da submissão. Atente-se no grito de Roland Orzabal em "SO LOOOOW". É um grito catártico e irado. É o grito da epifania da submissão.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Genesis - "The Lamia"

"The lights are dimmed and once again the stage is set for you"



"As luzes estão apagadas e mais uma vez, o palco está à tua espera."


Já uma estrela de culto, figura de proa do Rock Progressivo, foi no dia 22 de Maio de 1975, que Peter Gabriel entrou em palco pela última vez com os Genesis. A ocasião foi a última noite da "The Lamb Lies Down On Broadway Tour" - um espectáculo teatral alucinante, na época revolucionário no Rock.
O palco esperava-o no Palais des Sports, em Besançon, muito longe de casa. Gabriel estava farto. Até esta noite, um longo caminho com os Genesis ficara para trás. Com 5 álbuns em 4 anos e uma agenda de espectáculos intensa, Peter Gabriel decidiu sair dos Genesis e dedicar-se à sua família, orientando a sua carreira segundo o seu próprio ritmo, sem a pressão associada ao monstro que ele acabara de ajudar a criar. Uma banda de virtuosos, com um instinto melódico ímpar e guiada por uma força conceptual pioneira, os Genesis sobressaíam na cena do Rock Progressivo. Não que os Genesis tivessem a força e o sucesso, por exemplo, dos Pink Floyd, na mesma época. Mas mesmo assim era demais para Gabriel.
Peter Gabriel foi-se embora e nunca mais voltou.

E de que melhor forma Gabriel se poderia despedir dos Genesis, do que com um álbum absolutamente pivotal na História do Rock Progressivo, um marco que seria recordado e admirado durante décadas? Falo obviamente de "The Lamb Lies Down On Broadway", o 6º álbum dos Genesis e o último que contou com o seu histórico vocalista.


A vontade de abordar este álbum vem desde há muito tempo e matéria prima para escrever não falta. Diria mesmo que desde o início do blogue que venho acumulando pequenas ideias sobre "Lamb". Então porquê a demora? A razão é muito simples: por onde começar? Há tanto, TANTO para dizer... "Lamb" é uma obra tão complexa que não é fácil estruturar uma análise global satisfatória. Por isso mesmo, essa abordagem ficará para outro dia.
Para desatar este novelo, hoje resolvi começar por um dos fios: "The Lamia". Será que, ao puxar este fio, conseguimos desenlaçar parte do novelo de "Lamb"? Veremos.

"The Lamb Lies Down On Broadway" é um álbum duplo e extremamente diverso. O álbum conta a história surreal de Rael (um anagrama de "Real" e "Gabriel") - um jovem delinquente de ascendência Porto-Riquenha, perdido no subsolo de Nova Iorque.
"The Lamia" aparece a meio do 2º disco e é um dos temas de maior beleza do álbum. Segundo a wikipedia (adaptado a português legível):

"De acordo com a versão mais corrente, Lâmia era uma belíssima rainha da Líbia, filha de Poseidon e amante de Zeus, de quem concebeu muitos filhos, entre os quais a ninfa Líbia. Hera (mulher de Zeus), corroída pelos ciúmes, matava os filhos de Lâmia ao nascer. Desesperada, Lâmia escondeu-se numa caverna isolada e devido ao seu próprio desespero, transformou-se num monstro. Por fim, para torturá-la ainda mais, Lâmia foi condenada por Hera a não poder fechar os olhos, para que ficasse para sempre obcecada com a imagem dos filhos mortos. Por piedade, Zeus deu-lhe o dom de poder extrair os olhos de vez em quando, para descansar."

Repito o bold: "Desesperada, Lâmia escondeu-se numa caverna isolada e devido ao seu próprio desespero, transformou-se num monstro.". É isto. Para mim, esta explicação é uma das chaves do significado de "The Lamb Lies Down On Broadway". O isolamento, o desespero e a transformação. A transformação que se dá sempre que nos damos de caras com uma das anteriores.

Mas antes de avançar, vou tecer algumas considerações sobre o que significa falar de "The Lamb Lies Down On Broadway".

Em "The Lamb Lies Down On Broadway", os Genesis tratam um conflito interno, como os Pink Floyd fizeram em "The Wall". O ciclo crise/conflito/resolução/crise/... está lá, a descida à loucura na fase de conflito também, mas "Lamb" é infinitamente mais denso, complexo e multi-layered que "The Wall". Impenetrável.

É muito mais fácil identificarmo-nos com "The Wall", do que com "Lamb", da mesma maneira que, em geral, é muito mais fácil identificarmo-nos com Roger Waters do que com Peter Gabriel. Ambos têm uma compulsiva necessidade de auto-procura e auto-resolução, que os leva em busca de respostas aos dilemas pessoais mais profundos. Mais que isso, ambos sofrem de um determinado grau de demência e genialidade ("De génio e de louco..."), que lhes permite criar estas fascinantes obras sobre a condição humana. Porém, são graus de demência diferentes. Não sou psicólogo, nem aspiro a tal, mas a demência de Gabriel é diferente, porque ele também é diferente. Único.
Peter Gabriel tem uma qualidade impenetrável que o distingue de os demais vocalistas Rock. Ele é mais erudito, mais culto, mais eloquente e mais perturbado que o clássico artista Rock. E essa junção bizarra de características torna o seu trabalho nos Genesis e o seu trabalho a solo numa ilha, isolada. Impenetrável.

Eu posso dissertar parágrafos e parágrafos sobre o que ele quer dizer com esta ou aquela linha, mas tudo não passam de interpretações. Interpretações pessoais de uma obra que pode ser lida de muitas formas, porque de tão metaforicamente rica, se torna opaca. Impenetrável.

Tendo tudo isto em conta, quero esclarecer que tudo o que está aqui exposto é apenas a minha visão da história. "The Lamb Lies Down On Broadway" é um mistério cuja resolução cabe a cada ouvinte que se proponha a desvendar a história de Rael.

Talvez para nos elucidar, talvez para nos confundir ainda mais, Peter Gabriel conta mais uma parte da história de Rael (a que não entrou nas letras dos temas) no livrete do álbum (ou no gatefold do LP original). Esta serve de complemento explicativo para a acção que ocorre durante a música.
Em baixo fica a parte de "The Lamia":

"Rael touches his face to confirm that he is still alive. He writes Death off as an illusion, but notices a thick musky scent hanging in the air. He moves to the corner where the scent is stronger, discovering a crack in the rubble through which it is entering. He tries to shift the stones and eventually clears a hole large enough to crawl out of. The perfume is even stronger on the other side and he sets off to find its source, with a new-found energy.

The scent grows richer, he knows he must be near,
He finds a long passageway lit by chandelier.
Each step he takes, the perfumes change
From familiar fragrance to flavours strange.
A magnificent chamber meets his eye.

He finally reaches a very ornate pink-water pool. It is lavishly decorated with gold fittings. The walls around the pool are covered with a maroon velvet up which honeysuckle is growing. From out of the mist on the water comes a series of ripples.

Inside, a long rose-water pool is shrouded by fine mist.
Stepping in the moist silence, with a warm breeze he's gently kissed.

Thinking he is quite alone,
He enters the room, as if it were his own
But ripples on the sweet pink water
Reveal some company unthought of

Three snakelike creatures are swimming towards Rael. Each reptilian creature has the diminutive head and breasts of a beautiful woman. His horror gives way to infatuation as their soft green eyes show their welcome. The Lamia invite him to taste the sweet water and he is quick to enter the pool. As soon as he swallows some liquid, a pale blue luminescence drips off from his skin. The Lamia lick the liquid; very gently as they begin, with each new touch, he feels the need to give more and more.

Rael stands astonished doubting his sight,
Struck by beauty, gripped in fright;
Three vermilion snakes of female face
The smallest motion, filled with grace.
Muted melodies fill the echoing hall,
But there is no sign of warning in the siren's call:
"Rael welcome, we are the Lamia of the pool.
We have been waiting for our waters to bring you cool."

Putting fear beside him, he trusts in beauty blind,
He slips into the nectar, leaving his shredded clothes behind.
"With their tongues, they test, taste and judge all that is mine.
They move in a series of caresses
That glide up and down my spine.

They knead his flesh until his bones appear to melt, and at a point at which he feels he cannot go beyond, they nibble at his body. Taking in the first drops of his blood, their eyes blacken and their bodies are shaken. Distraught with helpless passion he watches as his lovers die. In a desperate attempt to bring what is left of them into his being, he takes and eats their bodies, and struggles to leave his lovers' nest.

As they nibble the fruit of my flesh, I feel no pain,
Only a magic that a name would stain.
With the first drop of my blood in their veins
Their faces are convulsed in mortal pains.
The fairest cries, 'We all have loved you Rael'.

Each empty snakelike body floats,
Silent sorrow in empty boats.
A sickly sourness fills the room,
The bitter harvest of a dying bloom.
Looking for motion I know I will not find,
I stroke the curls now turning pale, in which I'd lain entwined
"O Lamia, your flesh that remains I will take as my food"
It is the scent of garlic that lingers on my chocolate fingers.

Looking behind me, the water turns icy blue,
The lights are dimmed and once again the stage is set for you.
"


...e depois arranca Steve Hackett, com um dos solos mais arrepiantes que alguma vez registou nos Genesis. Um dos momentos altos do álbum. Fabuloso.

"The Lamia" era também um dos pontos altos do espetáculo ao vivo de "Lamb". Peter Gabriel cantava este tema dentro de um cone translúcido, com imagens de cobras, que rodava à sua volta. No fim do tema, o cone caía e Peter surgia envergando um body branco que brilhava no escuro.


Este foi um dos pontos altos da reconstrução que os The Musical Box - a banda de covers mais reconhecida dos Genesis - fizeram no Drámatico de Cascais na noite de 10 de Março deste ano, revivendo a lendária dupla jornada de 6 e 7 de Março de 1975. Mas isso é assunto para outro dia.


O que me resta dizer é que muito devido a este concerto, Fevereiro e Março de 2012 só deram "Lamb", fazendo "The Lamb Lies On Broadway", até ver, o meu álbum do ano. Para além disso, está também (já estava) na minha lista de 10/20 álbuns preferidos de sempre e isso não é dizer pouco. Já andava a dever este post aos Genesis. Mais sobre "Lamb" brevemente.