Um olhar sobre "Darkness On The Edge Of Town" de Bruce Springsteen, por ocasião da (magnífica) reedição do álbum.
Capítulo I - A promessa
"When the promise was broken, I cashed in a few of my dreams"
"A promessa". "A promessa" é um tema que fala de uma história de desilusão, traição e isolamento. É um tema que descreve a situação que Bruce Springsteen passava naquela altura.
Quem quebrou "a promessa" foi Mike Appel, o manager de Bruce Springsteen na época. Em 1972, Mike deu a assinar a Bruce um contracto, que estipulava que este recebesse uma ínfima parte dos direitos de autor das suas músicas e que os direitos de publicação fossem exclusivamente da editora. Reza a lenda que este contracto foi assinado por Bruce Springsteen num parque de estacionamento em New Jersey, sem sequer o ler.
Só em 1976, quando Bruce Springsteen decidiu que Jon Landau estivesse envolvido nas suas decisões artísticas e Landau aconselhou-o a analisar este contracto, Bruce se apercebeu do que tinha feito. Na sequência, Bruce despede Mike Appel e dão início a uma longa batalha jurídica que se arrastou pelos tribunais até 1977, sem que Bruce pudesse voltar ao estúdio, uma vez que Mike o tinha impedido de gravar com Landau.
"When the promise was broken I was far away from home, sleeping in the back seat of a borrowed car"
"A promessa". "A promessa" não só é um dos melhores temas que Bruce Springsteen nunca lançou (e são muitos), como também é dos momentos mais brilhantes da carreira de Bruce. Um momento tão brilhante e ao mesmo tempo tão pessoal, que Bruce tinha receio de o submeter ao juízo do público e da crítica. Medo esse que, em boa verdade, nunca terá perdido, uma vez que mais de 30 anos depois do lançamento do álbum, a versão mais aclamada deste tema continua sem ver a luz dia, em forma oficial:
"I followed that dream just like those guys do up on the screen"
A performance vocal de Bruce Springsteen neste take específico é tão profunda e tão emocional, que consegue materializar o sentimento de desilusão como nenhum outro tema que eu já ouvi. E parece-me que foi o seu cunho pessoal na interpretação do tema, que o impediu de lançar este take nas várias oportunidades que teve ao longo dos anos.
Vejamos: em 1978, Bruce deixa "The Promise" de fora do álbum "Darkness On the Edge of Town", muito embora este tema se encaixe na perfeição no espírito do álbum. Em 1998, Bruce deixa de fora da caixa "Tracks" que pretendia reunir em 4CD, os melhores temas de Bruce que tinham ficado de fora dos álbuns. Em 1999, pressionado pelos fãs que ficaram surpreendidos com a exclusão de "The Promise" da caixa, Bruce lança finalmente o tema em "18 Tracks", uma compilação com o melhor de "Tracks". No entanto, Bruce volta a surpreender, ao lançar uma regravação de 1999, excluindo os vários takes existentes no arquivo, de 1976 a 1978. Esta regravação é nomeada para um Grammy, mas voltou a não deixar os fãs satisfeitos. Finalmente, em 2010, Bruce lança um duplo álbum com os melhores temas gravados entre 1976 e 1978, que ficaram de fora de "Darkness On the Edge Of Town". A compilção chama-se "The Promise" e finalmente é incluído um take gravado na época. Mas ainda não não foi desta que "o take" que os fãs querem viu a luz do dia.
"We're gonna take it all and throw it all away"
Capítulo II - A escuridão
"I'll pay the cost for wanting things that can only be found in the darkness on the edge of town"
Para minha enorme satisfação, foi no passado fim-de-semana que, após largos meses de espera, me chegou às mãos no a reedição do álbum "Darkness On the Edge Of Town" de Bruce Springsteen, com o nome pomposo: "The Promise: The Darkness on the Edge of Town Story".
Mas já lá vamos. Antes disso, vamos abordar a complexa história deste álbum e resumir o que aconteceu até chegarmos aqui.
Depois do enorme sucesso do álbum "Born To Run" de 1975, altura em que Bruce cometeu a proeza de ser capa da Time e da Newsweek na mesma semana, a expectativa era grande para saber o que é que Bruce Springsteen tinha na manga para o 4º álbum. No entanto os meses passavam, Bruce andava na estrada e estreava alguns temas novos, mas não havia notícias sobre o novo álbum...
O problema estava no contracto que ele tinha assinado em 1972 com o manager Mike Appel, num parque de estacionamento em New Jersey, sem sequer o ler. "A promessa" tinha sido quebrada.
Enquanto decorria a batalha legal com Mike Appel, Bruce era obrigado a continuar na estrada a dar concertos com a E Street Band, a sua única verdadeira fonte de rendimento. Impedidos de gravar em estúdio, foi neste período que Bruce Springsteen e a E Street Band aperfeiçoaram as suas perfomances ao vivo, eventualmente ganhando a reputação de uma das melhores bandas rock ao vivo da história.
Resolvida a questão legal, no Verão de 1977 Bruce Springsteen avançou determinado para o estúdio com a E Street Band para gravar o seu novo álbum "American Madness", nome que daria lugar ao mais apropriado "Darkness On The Edge Of Town", lançado em 2 de Junho de 1978. Só que desta vez a motivação de Bruce Springsteen era bem diferente de "Born To Run".
Enquanto "Born To Run" era uma ode ao optimismo, à esperança e à mudança para um lugar e para tempos melhores (a metáfora nova-iorquina de “passar para o lado de lá do rio”); "Darkness" representa a percepção que afinal o lugar e os tempos para onde se mudou também têm os seus problemas e que a vida é isso mesmo: podemos andar a vida inteira à espera de um momento ("Badlands"), ou a perseguir um sonho ("Something In The Night"), mas no fim de contas o handicap com que nascemos ("Adam Raised A Cain") vai acompanhar-nos para sempre.
É esta dicotomia que faz estes dois álbuns tão especiais. Em suma, o optimismo e romantismo de "Born To Run", dá lugar à desilusão e isolamento de "Darkness On The Edge Of Town".
Fica aqui o tema-título "Darkness on the Edge of Town", ao vivo em Passaic (New Jersey), naquela que é a minha performance ao vivo preferida de Bruce Sprinsgteen. Seja ao vivo ou em estúdio. A paixão que Bruce imprime nesta actuação é arrepiante.
Na introdução, Bruce dedica a música a um amigo em dificuldades, com a seguinte frase lapidar, que resume o espírito do álbum:
"At one time or another, everybody's gotta drive through the darkness on the edge of town"
Capítulo III - O compromisso
Os primeiros 3 álbuns de Bruce Springsteen são uma ode ao romance, aos sonhos da vida e do Rock N' Roll, sob a premissa que tudo é possível, desde que se acredite piamente nisso e se tenha força de vontade suficiente para mudar.
São álbuns que transmitem um sentido de possibilidades ilimitadas que intoxicam o ouvinte. São álbuns cheios momentos de glória que não são reais, são fantasias que reflectem a vontade de um jovem de origens modestas, mas com grande coração, em triunfar no mundo.
Na introdução do documentário "The Promise: The Making Of Darkness On The Edge Of Town", incluído na edição especial lançada no último mês, Bruce Springsteen descreve o álbum da seguinte forma:
“The album is a reckoning with the adult world, with a life of limitations and compromises.”
Numa retrospectiva, podemos dizer que a visão que definiu a carreira de Bruce é dada em “Darkness on the Edge of Town” e não nos seus primeiros álbuns. As ideias de luta contra as dificuldades do mundo e os handicaps da vida são a fundação de quase tudo o que seguiria no seu trabalho.
O resultado desta mudança foi um álbum bem menos comercial e com sucesso bem mais reduzido. Mas isso não incomodou Bruce Springsteen, uma vez que a sua motivação para este álbum era criar algo verdadeiramente seu, inserido nas experiências que estava a viver. Como o próprio diz no referido documentário:
"More than rich, more than famous, more than happy, I wanted to be great"
A prova de que Bruce Springsteen não procurava o sucesso mainstream com este álbum é a escolha das músicas. Alegadamente, foram escritos e gravados aproximadamente 60 a 70 temas para "Darkness", sendo que a larga maioria não chegou à versão final do álbum.
Alguns destes temas seriam oferecidos a outras artistas e resultaram em grandes êxitos (por exemplo, "Because The Night" a Patti Smith, ou "Fire" às Pointer Sisters). Outros temas só chegariam no álbum seguinte, o duplo "The River", ou muito mais tarde na retrospectiva de 4CD "Tracks", em 1998. Outros ainda apareceriam apenas em performances ao vivo, ou em bootlegs que os fãs partilhavam entre si.
Tudo isto até agora, quando em 2010 chega finalmente a tão prometida edição especial de "Darkness On The Edge Of Town". Juntamente com esta reedição, é lançado "The Promise", uma compilação de 22 temas que ficaram de fora do álbum. Neste lote, incluem-se temas mais conhecidos como "Because The Night", "Fire", temas novos como "Save My Love" ou até versões alternativas de temas do álbum, como a versão eléctrica de "Racing In The Street".
Dos temas incluídos em "The Promise", provavelmente o mais conhecido é mesmo "Because The Night", que seria o grande êxito da carreira de Patti Smith. Como é contado no documentário pelos próprios, Bruce Springsteen deixou o tema fora de "Darkness On the Edge Of Town" porque era uma canção de amor e não entrava no espírito gélido que procurava para o álbum. Assim, o tema foi entregue a Patti por meio de Jimmy Iovine (um produtor que trabalhava com ambos), ainda com partes da letra incompleta. Patti completou-a e lançou "Because The Night" como single de avanço do seu álbum "Easter".Mais tarde, Bruce completaria a letra à sua maneira e o tema tornar-se-ia uma presença assídua nos seus concertos. Fica aqui um exemplo de uma versão ao vivo de "Because The Night" em Houston, uma performance também incluída na reedição de "Darkness On The Edge Of Town".
Capítulo IV - O álbum
"I've been working real hard, trying to get my hands clean"
Com este post, termino hoje a sequência de artigos dedicados a "Darkness On The Edge Of Town" de Bruce Springsteen, por ocasião da (magnífica) reedição do álbum. Juntamente com o álbum remasterizado, esta reedição conta com a compilação "The Promise", com dois (!!) discos de temas que ficaram de fora do álbum original, um concerto completo da lendária digressão de promoção do álbum em 1978, um documentário sobre a história do álbum, uma performance recente do álbum e ainda diverso material de arquivo.
Assim, a caixa é composta por 3 CD e 3 Blu-Ray (ou DVD, na versão mais barata) e é uma delicia para quem é fã de Bruce ou, como é o meu caso, deste álbum em particular.
Resumidamente, o conteúdo da caixa é o seguinte:
CD 1 - "Darkness On the Edge of Town" (Remastered)
CD 2 - "The Promise" (Disc 1)
CD 3 - "The Promise" (Disc 2)
DVD 1 - The Promise: The Making of "Darkness On the Edge of Town" (documentário sobre o gravação do álbum, realizado por Thom Zimmy, vencedor de prémios Emmy e Grammy)
DVD 2 - "Darkness on the Edge of Town": Paramount Theatre, Asbury Park & Thrill Hill Vault: 1976–1978 (performance intimista do álbum completo, filmada em Asbury Park em 2009. Filmagens do arquivo pessoal de Bruce Springsteen, nunca antes vistas)
DVD 3 - Houston '78 Bootleg: House Cut (concerto completo da Darkness on the Edge of Town Tour, nunca antes visto)
Olhando agora para o álbum original, este começa com um estrondoso Badlands (que parece fazer a transição do optimismo de "Born To Run" para o que viria a seguir) e depois continua até ao fim do Lado 1 com uma das sequências mais fantásticas num álbum rock: o brutal "Adam Raised A Cain", o desesperante "Something In The Night", o explosivo "Candy's Room" e o melancólico "Racing In The Street". É difícil escolher momentos altos ou baixos no Lado 1 deste álbum, tal é a sua solidez.
O Lado 2 parece começar mais uma vez com um raio de optimismo em "The Promised Land", outro fabuloso tema, mas também aqui prossegue com temas que transmitem dificuldades. A dureza da rotina de uma vida de trabalho em "Factory", a dureza da libertação em "Streets Of Fire" e a dureza do compromisso em "Prove It All Night". Todos estes temas fazem um build-up para o que chega no fim, quando o sujeito do álbum já perdeu tudo e surge de mãos vazias e coração despedaçado em "Darkness on the Edge of Town", terminando o álbum de forma sumária e lapidar:
"I'll pay the cost for wanting things that can only be found in the darkness on the edge of town"
O que me parece de realçar em "Darkness" é que, enquanto os temas no Lado 1 aparecem no álbum com as suas versões definitivas, os temas no Lado 2 parecem resultar melhor em concerto (especialmente na digressão de 1978), integrados num ambiente mais livre, vivo e acutilante. Para além disso, alguns temas foram alargados nas versões ao vivo, casos de "The Promised Land", com um solo duplo de harmónica no início e principalmente de "Prove It All Night" cuja versão no álbum durava 3:56, mas que ao vivo por vezes passava a marca dos 10 minutos.
E foi mesmo ao vivo que este álbum ganhou outra dimensão. A digressão de "Darkness On The Edge Of Town" ainda hoje é recordada como uma das mais intensas e lendárias da história do rock. A banda tinha chegado ao seu ponto alto, aperfeiçoando a performance dos temas novos e antigos.
O vídeo que está em cima é de uma performance de "Prove It All Night" em Phoenix, ainda no início da digressão, numa altura em que a versão alargada ainda não estava bem oleada, mas já dá para ter uma ideia. Esta versão está incluída no material de arquivo da reedição de "Darkness On The Edge Of Town".
Para terminar, vou fazer uso das palavras do próprio Bruce Springsteen, da mesma maneira que ele fecha o documentário de Thom Zimmy.
“How do you deal with those things and move on (...) to a life where you can make your way through the day and sleep at night”
“That's what most of these songs were about”
P.S.: Com este post encerro a sequência de posts de análise à reedição de "Darkness On The Edge Of Town". As 4 partes da análise estão aqui compiladas e estruturadas, de modo a conferir uma forma coerente ao texto.
P.P.S.: Esta foi a minha prenda de Natal. Espero que recebam as vossas.
BOM NATAL!