"The rain that comes..."
"Ram On" – UK Spring Tour Journal
(Part 3)
(Part 3)
Continuando daqui e daqui, ficam hoje com a terceira e última parte do meu diário de bordo, escrito a partir da minha segunda cidade preferida do Mundo – Londres (se quiserem saber, a primeira é Lisboa; se não queriam saber, paciência, agora já sabem).
Mas antes de continuar o diário, uma reflexão. Eu tenho uma teoria sob sustentação científica inatacável: a de que 2015 vai ser (e está a ser) o melhor ano de sempre. Esta teoria é baseada em três fundamentos:
– vou ver o David Gilmour ao vivo três vezes este ano (ele actua com a mesma frequência da aproximação terrestre do cometa Halley), entre muitos outros concertos;
– a absurda e idiotamente optimista convicção de que o dia de amanhã vai ser do caralhão;
– o irritante hábito que eu tenho em afirmar taxativamente que isto e aquilo e tudo é o "melhor de sempre" numa qualquer categoria que eu invente na altura.
Este último levava uma colega minha a recorrentes suspiros de olhos semi-cerrados: "Nuno, nem tudo pode ser o melhor de sempre!" (agora isso já não acontece; eu não melhorei, ela é que deixou de trabalhar comigo). Então não pode, claro que pode. A minha ida "por acaso" a Liverpool já confirmara isso mesmo. Agora havia a (remota) possibilidade de uma jornada dupla de Noel Gallagher. Mas a verdade é que nem sempre as coisas correm como planeamos, especialmente quando temos todas as probabilidades contra nós...
Dia 7 – Brockley
O concerto "secreto" do Noel Gallagher começava às 8:30PM (estamos em Inglaterra, por isso vamos tratar de horas locais), mas às 3:00PM já estou à porta do Rivoli Ballroom, uma sala de bailes (é mesmo para isso que é utilizada) perdida algures em Brockley – um bairro que está para Londres como Famões está para Lisboa. Fica longe como a merda.
Mal chego ao local, vejo logo o caso mal parado. Os seguranças do Noel já cá estão e tratam logo de me avisar que a entrada é só por guest list; e sublinham que eu não tenho a mínima hipótese.
Não vacilo. Acabei de chegar e demorei mais de uma hora a dar com isto, agora não vou a lado nenhum.
Estão a ver o mapa de Londres? O Rivoli Ballroom fica ali no canto inferior direito, nem o metro lá chega.
Também já cá estão alguns dos fãs do Noel, daqueles que o seguem para todo o lado como os No Name Boys seguem o Benfica. Aliás, os No Name são uns meninos. É que uma coisa é ir a Paços de Ferreira atrás do Benfica; outra coisa é ir atrás do Noel para a Coreia do Sul. Hardcore stuff.
A maioria é malta muito mal encarada. Estranho. A excepção é o Brian, um texano que no ano passado viu 23 concertos e este ano ainda "só" viu 2, mas já tem bilhetes para todas as datas da digressão americana do Noel. O Brian está triste, porque não são assim tantas quanto isso. O drama do Brian é que o Noel "só" vai dar 17 concertos nos EUA, mas ele ainda tem esperança que marque mais. Isto é o que eu chamo um doido de chancela internacional. Julgava que eu era um ganda maluco, porque vou ver os 3 primeiros concertos da digressão do David Gilmour, mas isto é a Liga dos Campeões.
Às 4:00PM, começa a notar-se grande alvoroço entre os seguranças. Vem aí o homem por quem esperamos. Ou não. Chegam várias carrinhas com vidros fumados e Noel, nem vê-lo. Entretanto fico a conversar 10 minutos com um tipo chamado Mike, que parece ser da organização, a quem conto a minha história. Ele diz que não pode fazer nada, mas deseja-me boa sorte.
Nota-se um nervoso miudinho por entre os fãs, mas todos já estiveram ao lado do Noel várias vezes. Eu, nervoso miudinho? Nada disso. Estou mais em taquicardia de nível avião a jacto.
Enquanto os olhos estavam postos ao fundo da rua, do outro lado da estrada...
...Noel aparece vindo da estação de comboios à frente do Rivoli Ballroom. Palavras para quê, é um homem do povo. Mas um homem que vem visivelmente mal disposto. Noel ainda pára para uns autógrafos, mas quando a segurança aperta, ele vira costas e vai para dentro da sala, onde vai fazer o soundcheck.
Boa, conheci o Noel Gallagher! Bem, "conhecer" aqui é um hipérbole. Foi mais conhecer no sentido em que se conhece sushi quando se passa ao lado do Sushi Corner no Colombo, a caminho de um Big Mac no McDonalds.
A minha "situação" é que ficou ainda mais complicada, uma vez que tive uma pequena altercação com o Kevin (o segurança pessoal do Noel), que não me deixou sequer aproximar do Noel. O gajo com quem eu precisava de fazer amizade tomou-me de ponta. Isto está a correr bem.
As horas vão passando, o frio vai apertando e o ambiente também vai ficando mais gélido. A segurança fecha a porta interior da sala, o que nos impede de ver o soundcheck. Até o Brian (o fã do Texas) comenta que nunca viu um ambiente tão mau antes de um concerto do Noel. E ele já viu muitos, sabemos bem. Parece que ninguém quer estar ali e não é (só) devido ao concerto ser em Brockley. Começa-me a cheirar que o Noel foi enganado e comprometeu-se a dar um concerto de borla (lembro que não há bilhetes, só há mesmo guest list) sem saber.
Pouco depois, Noel volta a sair da sala e aqui já o consigo apanhar para uma foto. Quer dizer, "apanhar" aqui volta a ser uma hipérbole. A meio da foto, o Noel caga na cena e vai-se embora, deixando-me com esta cara de parvo. Noel, gosto muito de ti, mas essa merda não se faz. Not cool, man. Not cool. Se fosse o Liam, de certeza que não faria isto.
Às 6:00PM, chega o "Miguel" ao Rivoli Ballroom. Ele não conhece nenhum tema a solo do Noel, mas como apropriadamente refere: "de borla, até injecções na testa". Assim é que é falar.
Ao olhar para os fãs que rondavam a entrada da sala, o "Miguel" comenta assertivamente: "Nunca vi tantos cabelos à Gallagher juntos. Cuidado, estes gajos levam isto a sério." Mas quando lhe conto o ponto de situação, noto-o apreensivo. Toda aquela confiança de ontem pareceu gelar no frio londrino.
As portas abrem às 6:30PM e começam a ser distribuídas pulseiras a quem tem o nome na guest list. Falamos com umas miúdas da organização, munidas de uma lista em A3 com os nomes dos sortidos, mas não conseguimos nada. Que raio se passa hoje, que nem o charme lusitano nos vale?
Às 7:00PM, o frio implacável da noite londrina (ou brockliana, como quiserem) começa a dar de si: o "Miguel" começa a tentar seduzir-me com a ideia de umas pints no quentinho de um pub. Ao fim de 1 hora, já está a vacilar. E com razão, isto é de loucos.
Mas eu estou mais numa de seduzir as miúdas da organização.
Identifico a minha única hipótese: a miúda do gorro. É ela que nos vai pôr lá dentro. Já tinha tentado a minha sorte com ela, mas vou lá insistir, dar o meu charme mais uma vez.
Está difícil, ela continua a abanar a cabeça. Faço a minha melhor cara de cachorrinho abandonado. Nada.
Vacilo. Mas não há saída agora. Já estou aqui há 4 horas e sinto que neste momento não podemos desistir. É para ir até ao fim.
Neste ponto, já dei conversa a toda a gente da organização, já implorei a todos e nada. O mais revoltante é que todos os No Name que chegaram sem bilhete e sem guest já conseguiram entrar. Só para os tugas é que não há nada.
Vou à miúda do gorro mais uma vez ainda. Nada... Isto com as mancunianas era limpinho, mas aqui não está fácil.
O Miguel lembra-me o ridículo que será quando me perguntarem o que eu vi nas minhas férias em Londres e eu responder "Vi Brockley". Se não acham isto suficientemente ridículo, então refaçam esta analogia, mas com um turista que vem a Lisboa para ver Famões. Haha, que idiota.
As tropas estão desmoralizadas.
Eu próprio começo a vacilar.
E eis que do nada, chega a miúda do gorro: "Já não aguento mais ver-vos aqui à espera, ao frio!" e dá-nos a desejada pulseira.
Venci-a pelo cansaço. Em engenharia, chamamos a isto rotura por fadiga.
Et voilá, 5 horas depois, estou dentro do Rivoli Ballroom.
Vejam bem estas caras de felicidade juvenil. Até os pés já estão mais quentinhos.
O concerto? Bem, o concerto foi bem melhor que injecções na testa.
Noel Gallagher tocou um alinhamento curto (13 temas), quase inteiramente composto por temas a solo (a excepção foi "The Masterplan", que fechou a setlist). O "Miguel" não conhecia nenhum tema a solo, mas não se importou muito com isso, uma vez que no 2º refrão de cada tema, já o cantava a plenos pulmões com um sorriso rasgado. Noel é mesmo um mestre dos singalongs.
Sentado nas teclas, está uma cara que me é familar. Olha, é o Mike! Afinal, o Mike com quem falara durante a tarde era o Mike Rowe, teclista do Noel.
A meio do set, Noel volta a mostrar a sua rabugice e justifica assim a ausência de temas dos Oasis:
"Não vou tocar temas dos Oasis porque: A) Vocês não pagaram; B) Tenho um novo álbum para vender; C) Vocês não pagaram e por isso, se depender de mim, podem-se foder".
Se dúvidas houvessem, Noel confirmou o mau humor que já lhe tinha topado. Será que era por estar em Brockley? Não sei. A verdade é que no fim do primeiro tema, Noel perguntou com o mesmo ar enojado que o "Miguel" fizera no dia anterior: "What the fuck are you doing in Brockley?!". Só mesmo para te ver, Noel.
Acabamos a noite em Marble Arch, a comer o melhor kebab de todos os tempos. Pelo menos sabe-me ao melhor kebab de todos os tempos, depois de estar 12 horas sem comer. Que dia glorioso. Que noite épica. E amanhã há mais Noel.
Dia 8 – Londres
O dia começa com uma feira de discos no Old Spitalfield Market, perto da estação de Liverpool Street.
Saio daqui com uma cópia selada do "The Queen Is Dead" dos The Smiths. Depois da minha visita ao Salford Lads Club, vem mesmo a calhar.
Umas barracas ao lado, num vinil usado dos anos 70, um aviso curioso: "HOME TAPING IS KILLING MUSIC. AND IT'S ILLEGAL". Olha, isto soa-me familiar. Afinal a história dos downloads e a perseguição das editoras ao público já é uma cantiga com muitos anos, desde os tempos áureos do vinil. É uma cantiga que tresanda a naftalina, fede a bolor.
Compras feitas, passo por casa para deixar a mercadoria e sigo para o Royal Albert Hall.
É a minha estreia no RAH e posso dizê-lo sem exageros (até porque, como sabem, eu não sou um indivíduo de exageros): é a sala de espectáculos mais espectacular onde já entrei, de uma grandiosidade e magnificência que só é compreensível, estando lá.
Há aqui um grande senão. É que a vista do meu lugar é esta:
Brutal. Dei 50£ por um lugar onde vejo meio palco, o qual ainda está tapado por grades. Como a lotação está esgotada, nem sequer tenho hipótese de mudar de lugar. Ainda tento dar a banhada a um casal que se sentou ao meu lado, mas não tenho sorte. Os bifes perceberam que foram ludibriados e mandam o português sentar-se no seu lugar. Um pouco de História no RAH, mapa cor de rosa all over again.
O melhor é focar-me na música.
Às 7:30, entram os Future Islands. Desde que os vi tomarem de assalto o palco do David Letterman que fiquei maluco com eles. Este não é o seu público, mas os Islands não desapontam. O RAH começa com aplausos tímidos no fim do primeiro tema, mas o ruído cresce com o avanço do concerto e com o preenchimento da sala, principalmente quando Sam Herring começa a dançar. Ah pois, aquela dança.
Sam Herring prepara-se para fazer "a dança"; na foto dá também para ver que fiquei longe como a merda
Chega "Seasons (Waiting On You)", Sam faz a sua dança e o público responde audivelmente. Já fervem as bancadas do RAH. Sentado à minha frente, aparentemente alheio ao entusiasmo à sua volta, um snob londrino manda uma mensagem no telemóvel. Curioso como sou, dou uma olhada indiscreta (sim, eu sei que o que fiz é terrível e não se deve fazer):
"This dude on stage is quite probably the worst dancer I've ever seen, babe. Worse than me.
Quite good band but lmao."
O pior dançarino do Mundo? Porque dança de forma diferente e despreocupada? Malta, não liguem a este snob (nem aos outros), o Sam Herring é awesome!
#rant
O set dos Future Islands é curto (7 temas) e eles rapidamente saem de cena. Daqui a pouco temos (novamente) Noel Gallagher.
O ambiente à volta do concerto de hoje não tem nada a ver com o de ontem. Hoje respira-se electricidade positiva. Nos corredores do Royal Albert Hall, vêem-se fãs na casa dos 20, 30 e 40 (todo o espectro atingido pelos Oasis) a beber pints, contando estórias de concertos passados e partilhando expectativas para hoje. Sente-se o entusiasmo na sala.
Noel finalmente chega e TODA a gente se levanta. Yeah! O problema do lugar sem visão, afinal, não é problema nenhum. O meu lugar até é o melhor de todos, porque fica na ponta e dá para eu dançar à vontade. Hehe espectáculo.
O público veio para ver Noel and he delivers. Muito mais bem disposto que ontem em Brockley, toca na íntegra o seu alinhamento normal desta digressão, desta vez com direito a vários temas dos Oasis e a um coro lá atrás. Soberbo. Muito melhor que Brockley.
O momento da noite? "Fade Away", um lado B dos Oasis. Esse foi o meu momento, porque na verdade, todos os temas da antiga banda de Noel são recebidos em delírio pelo público, claramente com fome dos Oasis.
Por muito que a audiência adore o Noel (e adoram, pelo menos pagaram bem caro para estar ali), ela recorda-lhe várias vezes que ainda ama o seu irmão. Ao longo da noite, são vários os interlúdios que o público aproveita para gritar "Liam! Liam! Liam!". É impossível Noel não ouvir. Ouve de certeza. De tal forma, que às tantas franze o olho e diz qualquer coisa como:
"What?! Thought so...".
Ignora. Mas continua: "This next song is for my brother, cos he needs it now. This is called Champagne Supernova.".
Loucura na audiência. Acho que nunca vi nada assim.
Toda a gente canta de pulmões cheios aquela letra maravilhosa sem sentido nenhum ("Slowly wlaking down the hall, faster than a cannonball"?!). O homem que está ao meu lado chuta a namorada para o lado e põe o braço à volta do meu pescoço, enquanto grita aos meus ouvidos "Where were you while we were getting high?". E de repente, os Oasis quase estão ali outra vez. Só falta o Liam. Todos queremos o Liam. E o Noel sabe. Resta saber se vai continuar a ignorar.
No fim do concerto, o mate que insistia em agarrar-me – suspirando que a namorada não sabe o que um concerto do Noel significa, mas com a certeza que eu sei – revela que viu o Noel no O2 há 3 semanas, mas que a noite de hoje foi incomparavelmente melhor: "This night had energy, this night had heart", confessa.
No caminho para casa, sentado à frente de um double decker bus (onde é que eu já ouvi isto?!), miro o bilhete. As férias acabam aqui, mas poderia haver melhor final que este?
Dia 9 – Epílogo / Regresso a Lisboa
Já de regresso a Lisboa, em Heathrow lembrei-me de uma ex-namorada que estava sempre com o período atrasado. Não era nada de preocupante, ela trabalhava na TAP.