Ontem pensei em qual seria o meu poema preferido. O primeiro que me lembrei foi o "Cântico Negro", de José Régio. Este poema foi incluído no seu primeiro livro de antologia - "Poemas de Deus e do Diabo", publicado originalmente em 1925.
Já não lia o "Cântico Negro" há anos. Ontem procurei-o na net, imprimi-o num A4 e fechei-me no carro durante 2 minutos para voltar a ler o poema. Uma leitura, um take. O resultado foi este:
Já tinha saudades de ler poesia.
Hoje a palavra escrita dá lugar à palavra falada e a única música que se ouve são as palavras de José Régio.
Fica aqui o fabuloso poema na íntegra:
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: "vem por aqui!" Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali...
A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura ! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: "vem por aqui"! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Sei que não vou por aí!
Todos procuramos no cinema (e em qualquer forma de arte) algo de particular.
Procuremos o riso e temos as comédias relaxantes que povoam os fins de tarde na televisão; procuremos o romance e temos as comédias românticas que enchem os video-clubes; procuremos vestir a pele de um herói por 2 horas e temos os filmes de acção do James Bond; enfim, e por aí fora, só para dar alguns exemplos do cinema mais comercial.
De quando em vez, também procuro no cinema um dos tópicos que listei em cima, mas confesso que cada vez tenho menos paciência para tais lugares comuns. Não levem isto como uma posição de snobismo, eu continuo a venerar os filmes do James Bond e não perdi a estreia do último "American Pie" (já agora, o filme que mais me fez rir da saga).
Porém, em sentido contrário, cada vez mais sou atraído pelos circuitos de cinema indie (ou alternativos), os quais nos oferecem um leque de sensações bem diferentes.
Acabar de ver um filme e ficar, estupefacto, a olhar para o ecrã negro durante alguns minutos; sair da sala de cinema a matutar; ficar o resto da semana com o filme colado na nossa mente; são estas as sensações que procuro nestes dias, algo ao alcance de muito poucos realizadores.
Já dei um excelente exemplo disso mesmo, aqui, quando descrevi (ou tentei) a minha experiência esvaziante de ver "A Torinói Ló" ("O Cavalo de Turim"), de Béla Tarr, numa sala de cinema.
Esvaziante, porque foi de profundo vazio, o sentimento com que o filme me deixou. Como um pano seco, outrora húmido, depois de torcido vigorosamente.
Como tive a oportunidade de referir na altura, à falta de acção no filme, um dos "aspectos chave" era a sua banda sonora, a cargo de Mihály Vig. Ora, se "A Torinói Ló" foi a última longa metragem de Béla Tarr, foi também o último capítulo de uma longa história de colaborações entre Béla e Mihály, que começou em 1984. A saber (entre parêntesis os nomes em inglês e/ou em português, quando disponíveis):
- "Őszi Almanach" ("Autumn Almanac") - 1984
- "Kárhozat" ("Damnation" / "Danação") - 1988
- "Az utolsó hajó" - 1990 [curta-metragem]
- "Sátántangó" ("Satan's Tango" / "O Tango de Satanás") - 1994
- "Utazás az Alföldön" ("Journey on the Plain") - 1995 [curta-metragem]
- "Werckmeister Harmóniák" ("Werckmeister Harmonies" / "As Harmonias de Werckmeister") - 2000
- "A Londoni Férfi" ("The Man From London" / "O Homem de Londres") - 2007
- "A Torinói Ló" ("The Turin Horse" / "O Cavalo de Turim") - 2011
Na prática, isto significa que Mihály Vig foi o autor da banda sonora de todas as longas-metragens de Béla Tarr desde 1984, bem como de algumas curtas. Note-se que algumas destas obras ("O Tango de Satanás", "As Harmonias de Werckmeister" e "Danação") estão previstas para lançamento em DVD, ainda este mês, pela Midas Filmes.
Não sei muito sobre Mihály Víg e a pesquisa sobre ele não é fácil, devido à imperceptibilidade do idioma magiar. Mas sei que a sua música é um complemento fundamental dos filmes de Béla Tarr, especialmente tendo em conta o tipo de cinema "contemplativo" do realizador húngaro.
Mais do que isso, as bandas sonoras de Mihály Víg nos filmes de Béla Tarr são uma obra em si mesmo.
É uma pena que não esteja disponível (pelo menos, que eu saiba) para compra, uma compilação exaustiva destas bandas sonoras, mas em 2001 foi lançado um álbum que faz parte desse trabalho: "Filmzenék Tarr Béla filmjeihez". Esta compilação junta os temas chave das bandas sonoras de 4 filmes de Béla Tarr: "Őszi Almanach", "Kárhozat", "Sátántangó" e "Werckmeister Harmóniák".
O alinhamento é o seguinte:
O tema que eu aqui deixo é "Valuska" de "Werckmeister Harmóniák" e é o meu preferido de Mihály Vig. Mais do que isso, "Valuska" é um dos meus temas preferidos de sempre, no que a bandas sonoras diz respeito. Principalmente se for ouvido e contextualizado, com a cena do filme em que aparece.
Valuska é o nome do personagem principal do filme. Nesta cena, depois de ser expulso de um bar, Valuska caminha sozinho no frio da noite, pela rua vazia, escondido entre as sombras dos candeeiros de rua. A cada passo de Valuska, a câmara afasta-se mais e mais, revelando a natureza solitária da sua existência.
Um homem só, caminhando pela rua escura e deserta, no frio cru da noite.
Este plano da caminhada solitária de Valuska dura aproximadamente 2 minutos (nada de especial, na escala de Béla Tarr) e é, na minha opinião, o mais poderoso de toda a obra cinematográfica do húngaro. É um plano que condensa toda a força que o cinema do realizador nos despeja: toca-nos no fundo da alma; mexe com a complexa profundeza da psique.
Como?
Mostrando num plano, numa simples metáfora, numa soma de imagem e som, algo que personifica toda a história de uma vida.
Todos procuramos algo no cinema. Às vezes, sem querer, encontramo-nos.