Rattle That Broken Fout Tour Journal
Tomo II - Um Fariseu em Pula, três contactos
Quando eu tive o David Gilmour à distância da minha canadiana na Arena de Pula, por três ocasiões diferentes, lembrei-me deste episódio bíblico. Durante toda a minha vida, tive Gilmour como um ser divino, criador de sons que me definiram, autor de obras que engrandeceram a minha existência, um ser perfeito. Mas agora, este ser divino estava ali, tão perto de mim, mais perto do que eu poderia imaginar quando aos 5 anos de idade, o meu Pai me submetia repetidamente ao concerto de Veneza até eu decorar a arquitectura da Praça de São Marcos. Pude-lhe ver as rugas, o medo de ser engolido pela multidão, a insegurança de quem já não tocava ao vivo há 10 anos, a preocupação de quem pelejava para que nada falhasse, o ar frágil de quem borrou a pintura numa série de solos e o alívio de quem chegou ao fim da primeira noite deixando tudo o que podia em palco. Vi tudo como um qualquer Fariseu que teve o acaso de se cruzar com aquele a quem chamavam o Rei dos Reis.
E assim pude ver que David Gilmour é "apenas" um homem vestido com uma t-shirt preta. Um homem com fragilidades, medos e dúvidas. David é, afinal, humano.
Mas vamos ao princípio. Recuemos 24 horas.
Chego a Pula no dia anterior ao concerto e vou directo para a Arena. Estão a montar o palco e pasme-se, as visitas turísticas ainda estão abertas!
Entro.
WOWOWOW!!! O que é isto? Caixas dos Pink Floyd?!
Ando no meio do equipamento do David Gilmour, a maioria ainda remonta aos tempos dos Pink Floyd. Quase todas as caixas têm a inscrição PINK FLOYD WORLD TOUR. Nem acredito que me deixam andar ali.
Depois de uma hora estarrecido em frente ao equipamento com um estranho sentimento de "foda-se, estou mesmo aqui", dou uma volta ao recinto e deparo-me com o camarim de David Gilmour. Amanhã à noite estará ocupado.
Depois vem "Wish You Were Here". Esta todos conhecem, é vê-los de telemóvel em punho, a gravar o momento. Cena normal nos nossos dias. Mas David ainda tem mais uma na manga. Pam... Pam... Pam... Pam... "High Hopes"! A minha reacção neste momento não deveria ser descrita aqui, sob pena de perder a imagem máscula perante as meninas. Mas que se foda. Mal ouvi o sino, desatei a chorar descontroladamente, cara escondida no braço da canadiana. "High Hopes" é a minha música, o meu elixir. Naquele momento, tudo valera a pena. O pé partido, o risco da viagem solitária para a Croácia, o frio que rapei em Zagreb, tudo fora compensado. O sentimento era um misto de deslumbramento e de "o que raio está a acontecer?!".
Para quem não acredita, o próprio David partilhou no Youtube um vídeo do ambiente na esplanada com vista para a Arena.
À saída da Arena, a carrinha que levava David e a sua mulher Polly Samson passa mesmo à minha frente. Primeiro contacto. Estive a uma janela de David! Comigo, carregava um LP do meu álbum preferido ("The Division Bell", para quem não sabe) na esperança que David pudesse parar para assinar. Nos olhos dele, o medo de ser engolido pela multidão. Já visualizava a capa do melhor álbum de todos os tempos assinada, mas havia muita gente. Não é desta.
Ainda assim, levo uma recordação da minha visita à Arena de Pula. É o que dá deixarem os fãs andarem pelo backstage antes dos concertos. Agora quero ver como é que a banda se orienta para fazer chichi durante o solo de 10 minutos do "Comfortably Numb".
Dia de concerto. Porra, já não era sem tempo, a expectativa já estava a dar cabo de mim. Na camarata do hostel, acumulam-se rapazes de todo o mundo, ali de propósito para o concerto: um uruguaio, um argentino, um russo, um espanhol, um inglês e um português. Nações Unidas Floydianas. Com todos abaixo dos 25 anos, sou o mais velho ali. Conto histórias do meu concerto em Paris de 2006, do Roger Waters em Wembley e ganho logo a admiração da plateia. Fossem todas as plateias assim tão fáceis.
À tarde, aproveito para um mergulho no Adriático de canadianas, para espanto dos transeuntes na praia. O mergulho de canadianas até foi fácil, a grande aventura foi chegar ao mar. Falaram-me maravilhas das praias na Croácia, mas esqueceram-se de me avisar que as praias eram de calhaus, óptimas para um pé partido. Adiante.
Hora do concerto. Já conhecendo os cantos à casa, finto a segurança e consigo entrar com uma garrafa de Jameson. Ouvir Pink Floyd sóbrio também é fixe, é verdade, mas para que é que eu haveria de fazer uma coisa dessas?
Vou directo com o meu LP para junto do camarim do David. Poucos minutos depois, aí está ele. David sai do camarim. Segundo contacto.
"DAAAAVID!", grito em súplica. David vira-se e vem na minha direção. Quase a chegar, a um metro apenas, David repara que naqueles parcos segundos se haviam juntado dezenas atrás de mim. David pára. Vira-se. Vai-se embora.
"FODA-SE! Estive tão TÃO perto! FODA-SE!", gritei num português que pareceu aos demais um qualquer dialecto hebraico. Ainda não é desta.
Procuro o meu lugar. Que maravilha: segunda fila, ainda a inspirar o fumo saído do palco. E logo chega David. Com todas as rugas à minha frente, juntando o ar frágil de um homem de 69 anos, com a robustez de quem teve que aturar o Roger Waters durante quase duas décadas. Terceiro contacto.
Porque o som e as imagens são, como sabemos, louder than words, deixo-vos com alguns dos momentos em Pula (desculpem-me, não consegui carregar os vídeos do Facebook aqui. Se me puderem ajudar, agradecia).
"Money"
"High Hopes"
Astronomy Domine
Posted by Nuno Bento on Segunda-feira, 14 de Setembro de 2015
"Fat Old Sun"
"Sorrow"
"Run Like Hell"
Run Like Hell
Posted by Nuno Bento on Segunda-feira, 14 de Setembro de 2015
"Time"
Pula foi especial. Não sabia nada da setlist e tinha feito um aviso de excomunhão a quem ousasse quebrar-me esse segredo. Mesmo assim, a setlist foi mais ou menos aquilo que eu estava à espera. Mas quando David arrancou com o BRRRRRUMMMM de "Sorrow", saltei da cadeira, num grito que deve ter sido audível no outro lado do Adriático (na verdade são dois gritos e são bem audíveis no vídeo em cima). Foi o meu momento da noite.
O concerto não foi perfeito, mas foi memorável. O David fartou-se de meter água, mas foi humano. Pula foi especial porque estive mesmo ali, ao pé de David, vi que ele é "apenas" um homem. E passei a amá-lo ainda mais por isso. Porque David Gilmour não é um homem qualquer, é um homem que cria coisas divinas.
Fui à Croácia e à Itália à caça de momentos. Este foi o primeiro.
Adorei ler isto, nem imaginas :)) três anos e tal a ler-te precisamente por posts como estes, da tour do Gilmour. A música na tua vida e a vida nas tuas palavras. O sentimento que tu pões nestas coisas e o entusiasmo e coração.
ResponderEliminarMas David ainda tem mais uma na manga. Pam... Pam... Pam... Pam... "High Hopes"! A minha reacção neste momento não deveria ser descrita aqui, sob pena de perder a imagem máscula perante as meninas. Mas que se foda. Mal ouvi o sino, desatei a chorar descontroladamente, cara escondida no braço da canadiana. "High Hopes" é a minha música, o meu elixir. Naquele momento, tudo valera a pena. O pé partido, o risco da viagem solitária para a Croácia, o frio que rapei em Zagreb, tudo fora compensado. O sentimento era um misto de deslumbramento e de "o que raio está a acontecer?!".
:)) aqueles momentos na vida em que não existe mais nada, tudo o resto é paisagem. Conhecendo-te um bocadinho consigo imaginar a choradeira. E é bem justificada.
Thanks, Rita :)
EliminarO instante em que comecei a ouvir os sinos no soundcheck foi um daqueles momentos de claridade, quando o subconsciente sobe à consciência e se dá a percepção de todas as coisas da nossa vida. Mas no fim de contas, é disso mesmo que fala o "High Hopes", não é? :)
"Steps taken forwards, but sleepwalking back again"
:)
:) sleepwalking back again (o eco :P)
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