sábado, 23 de junho de 2012

Bruce Springsteen - "The River" (Live)

"Is a dream a lie if it don't come true? Or is it something worse?"

A música de Bruce Springsteen é feita de histórias. Histórias com personagens, personagens como eu, tu ou qualquer outra pessoa que sinta, sofra e seja self-conscious (perdoem-me o anglicanismo, mas não consegui pensar numa palavra tão adequada em português).
Como nós, essas personagens têm sonhos, sonhos épicos... mas que na realidade nunca resultam como os tínhamos imaginado. Estas personagens foram introduzidas em 1975, no álbum "Born To Run", e acompanharam a música de Bruce ao longo de toda a sua carreira.

Será um sonho uma mentira se não se realizar? Ou será algo pior?

A vida não é um "mar de rosas". Temos que ter, à partida, essa noção, sempre que nos lançamos para um sonho, ou para um novo desafio. Mas a verdade é que, para quem tem uma natureza mais optimista, essa noção não existe e quando a realidade nos cai em cima, o embate é muito mais doloroso.
Será esse um motivo suficiente para deixarmos de sonhar? A resposta é negativa. Pelo menos, não é essa a minha opinião.
Nem é essa a opinião de Bruce Springsteen, cujas personagens (hoje já muito mais calejadas) foram do céu (em "Born To Run", assunto a que voltarei brevemente), ao inferno (em "Darkness On The Edge Of Town"), passaram pela desilusão (em "The River"), ou pela dissolução das suas relações sentimentais (em "Tunnel Of Love"), mas que sempre mantiveram a esperança e... o sonho (a mensagem forte dos álbuns da última década, desde "The Rising" a "Wrecking Ball").

As histórias que Bruce foi contando ao longo da sua carreira não foram um produto de geração espontânea do seu imaginário. Muitas delas tiveram origem em experiências pessoais e foram materializadas em música, de uma forma que todos que passámos por situações semelhantes nos podemos identificar. Como já aqui referi, é essa capacidade única, sem qualquer comparação que eu conheça, que eu tanto admiro nele.

Quando Bruce chegou ao fim da década de 70, já tinha passado pela sua dose de sofrimento, tanto com a família, nos seus anos de adolescente, como com a indústria da música, ao longo da sua carreira.
Os dramas que Bruce enfrentou ao longo da sua carreira, especialmente durante a gravação dos álbuns "Darkness On The Edge Of Town" e "The River", bem como dos que ficaram perdidos pelo meio, já foram aqui abordados.
Só ainda não falei nos dramas que Bruce enfrentou durante o seu crescimento.

E isto leva-me à difícil relação que Bruce tinha com o seu Pai, a qual funcionou como uma das principais forças motrizes da sua inspiração, especialmente na primeira metade da sua carreira.

Bruce não teve uma infância propriamente dramática. Filho de pais operários (a mãe era secretária e o pai fazia um pouco de tudo, para fugir ao desemprego e sustentar a sua família), de classe média e criado segundo uma educação católica rígida, os dramas de Bruce foram os mesmos de todos os adolescentes que tinham ideias diferentes dos pais (principalmente, do Pai) e que queriam seguir um caminho diferente, daquele que por eles tinha sido imaginado.

Afinal, Bruce estava, também ele, a desfazer um sonho do seu Pai.

O pai de Bruce não gostava da sua guitarra (referia-se a ela sempre como a "God-damned guitar") e detestava a ideia de ele fazer daquilo um modo de vida.
As discussões em casa eram uma constante.
Na introdução ao tema "The River", num concerto gravado no LA Coliseum, em Los Angeles, a 30 de Setembro de 1985, Bruce aborda esta tempestuosa relação:

"When I was growing up, me and my Dad used to go at it all the time, over almost anything.
I used to have really long hair, way down past my shoulders, when I was 17 or 18. Oh man he used to hate it...

We got to where we would fight so much that I would spent a lot of time out of the house. In the summertime it was not so bad, because it was warm and your friends were out. But in the winter, I remember standing downtown and it would get so cold... and when the wind would blow I had this phone booth that I used stand in. I used call my girl for hours at a time, just talking to her all night long...
Finally I would get my nerve up to go home, I'd stand there in the driveway and he would be waiting for me in the kitchen... And I'd tuck my hair down in my collar and I'd walk in... and he'd call me back to sit down with him... and the first thing that he always asked me was "What did I think I was doing with myself"?
And the worst part about it was I could never explain it to him.

I remember I got in a motorcycle accident once... I was laid up in bed, he had a barber come in and cut my hair and man... I can remember telling him that I hated him and that I would never ever forget.

He used to tell me:
"I can't wait till the army gets you... When the army gets you, they are gonna make a man out of you! They gonna cut all that hair off and they will make a man out of you!"
And this was in I guess '68... And there was a lot of guys from the neighborhood going to Vietnam. I remember the drummer in my first band coming over to my house with his marine uniform on, saying that he was going and that he did not know where it was. A lot of guys went and a lot of guys didn't came back and a lot that came back weren't the same anymore...

I remember the day I got my draft notice, I hit it from my folks and three days before my physical, me and my friends went out and we stayed up all night. We got on the bus to go that morning... Man, we were all so scared...
And I went... and I failed.

I remember coming home after I had been gone for three days, walking in the kitchen and my mother and father were sitting there and my dad said: "where you been?".
I said: "I went to take my physical."
He said: "What happened?"
I said: "They didn't take me"
And he said... "That's good.""




Bruce Springsteen é um óptimo contador de histórias. Esta, em especial, deixa-me sempre debaixo de um arrepio na espinha, principalmente no fim.
Afinal, o durão do Pai, que queria que o filho fosse um duro como ele, que queria que o exército o "amansasse", que queria que ele cortasse o cabelo, largasse a guitarra e fosse estudar Direito... Afinal, o Pai só queria o melhor para ele. O Pai amava-o e tudo o que fazia era na certeza que era o melhor para o filho. E estava no seu direito.
Porque afinal, Bruce estava, também ele, a desfazer um sonho do seu Pai.

Quando Bruce viu o alívio do pai, na altura que descobriu que o filho não vai para a guerra, terá sido aí que se apercebeu que tudo aquilo é o amor duro de um Pai. Tough love is, after all, true love.

O mais engraçado nisto tudo? É que Bruce se tornou, à sua maneira, de uma reflexão do seu Pai. Uma imagem reflectida num espelho diferente.
Bruce vestia-se com as roupas do seu Pai, cantava sobre as dificuldades da classe operária (que ele viu e viveu enquanto jovem) e assim tornou-se num estandarte da working class americana.
O Pai de Bruce queria que ele se tornasse um advogado, mas o que Bruce se tornou foi não mais que... o seu Pai, em cima de um palco.
Bruce falou sobre isso numa entrevista à Rolling Stone:

"When I went to work, I really went to work in my dad's clothes, and it became a way, I suppose, that I honored him and my parents' lives, and a part of my own young life. And then it just became who I was."

No fim de contas , apesar de não se dar com o seu pai durante o seu crescimento (e mostrou isso em temas como "Adam Raised A Cain"), Bruce acabou por reconhecer o mérito do trabalho árduo que o seu Pai tinha entre mãos, como "chefe" de uma família que não lhe deu facilidades.

Como em tantas outras ocasiões, a mensagem de Bruce ressoa na minha cabeça, como se estivesse a falar para mim.
Felizmente, não creio que o meu crescimento tivesse sido feito numa colisão tão forte com o meu Pai, até porque, ao contrário de Bruce, eu acabei por me tornar naquilo que ele desejava. Mas isso não significa que tenha sido fácil.
Os choques entre Pai e Filho em minha casa eram também frequentes e não raras vezes, muito duros. Mas como já referi aqui, tudo o que eu queria ser, afinal, era como o meu Pai.
Uma imagem reflectida num espelho diferente.



P.S.: Com isto tudo, ao fim de 12 parágrafos, acabei por nem abordar o tema "The River" e a sua história, para além da "realização do sonho". É uma pena, porque há muito mais para dizer. Ficará para outra ocasião.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Aretha Franklin - "Respect"




RESPEITO

Uma ode a Cristiano Ronaldo, o Melhor jogador do Mundo

Cada vez mais respeito, cada vez mais admiro o Cristiano Ronaldo.
O Mundo pouco deu a Cristiano no seu nascimento. Veio de uma família pobre e a apetência para os estudos não era muita, mas o rapaz tinha um dom: sabia jogar à bola.
O dom retirou-o da Madeira, da família, dos amigos e levou-o ao continente, mas diz quem o viu que nessa altura ele ainda não era sequer o melhor da equipa. A diferença dele, para os outros, era a sua ENORME ambição. O puto queria ser o melhor do mundo. Loucura? Não: ambição.
E foi só à custa de muito esforço e muito trabalho, que Ronaldo se tornou mesmo o MELHOR DO MUNDO. O homem é hoje o espelho de anos de trabalho, dedicação e superação. RESPEITO.

A minha admiração pelo Ronaldo começou a crescer ainda mais, quando comecei a sair do meu país. Lá fora, somos vistos como um país pequeno e periférico. Mas devido a este Senhor (e a outro que também está em Madrid), somos conhecidos, falados e discutidos em todo o Mundo. E desenganem-se aqueles que pensam que é "pelas piores razões, porque não mostram humildade" e o camandro.
Tretas.

Vão lá para fora, tentem ser grandes, tentem ser melhores que os outros todos (incluindo os que são naturais do lugar para onde foram) e depois digam-me como é que é.
Quando aparecem dois portugueses que se tornam os MELHORES DO MUNDO naquilo que fazem (Mourinho e Ronaldo), estes são obrigados a desenvolver uma certa arrogância como defesa.
Hoje, quando olham para nós lá fora, já não é com desprezo, ou indiferença. Na pior das hipóteses, é com raiva, ou despeito. E isso significa também RESPEITO.
Que é muito bonito... e eu gosto.

O CAPITÃO VOLTOU. 




P.S.: Com este, já lá vão 3 posts consecutivos mais atípicos. O blog retornará ao habitual dentro de momentos. Ou não. Veremos.

Falando agora um pouco do tema que aqui deixo: "Respect" é um original de Otis Redding, lançado em 1965 no seu álbum "Otis Blue", mas que foi popularizado por Aretha Franklin em 1967, através um single que chegou ao 1º lugar das tabelas nos EUA e na Austrália e que foi um sucesso em todo o Mundo. O tema seria incluído no seu álbum "I Never Loved a Man the Way I Love You", do mesmo ano. A versão original do tema está em baixo:



"Respect" deu a Aretha os seus primeiros dois Grammy's, dando início a uma impressionante série de 8 anos consecutivos (!!!), de 1968 a 1975, a arrecadar o Grammy de Best Female R&B Vocal Performance. No total, Aretha Franklin já ganhou 18 (!!!!) Grammy's, números impressionantes que mostram como é reconhecida na indústria musical.

O tema fez também parte de uma impressionante série de êxitos para Aretha, a partir do momento em que ela se mudou para a Atlantic. Nos primeiros dois anos sob a alçada desta editora, Aretha lançou 10 singles, 6 dos quais o 1º lugar da tabela R&B da Billboard.

"Respect" tornar-se-ia no tema ex-libris de Aretha Franklin, sendo utilizado como hino dos movimentos feministas nos anos 70. Ainda hoje é a interpretação mais conhecida de Aretha.

"R-E-S-P-E-C-T
Find out what it means to me!"

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Koji Kondo - "Spirit Temple Theme"



Aproveitando a boleia do último post, em que mudei bastante a agulha do blog, hoje vou fazê-lo novamente, mas de forma ainda mais radical.
Depois de uma banda sonora de um filme, hoje, a banda sonora de um videojogo.

Mas não é um videojogo qualquer. Dá pelo nome de "The Legend Of Zelda: Ocarina Of Time" (dito com o queixo levantado, semblante pomposo e voz de ocasião solene) e ainda hoje é reconhecido como um dos melhores jogos de sempre, que marcou indelevelmente o panorama do género na sua época.
Para mim, foi, é e provavelmente sempre será, o melhor. Mas acima de tudo, o mais especial.
(até porque longe já vão os tempos em que tinha tempo para jogar a estas coisas)



Estávamos no Natal de 1998 e eu já andava há anos a suspirar pela chegada do "Zelda 64" (nome por que era conhecido o jogo nas revistas da especialidade, em analogia ao então novíssimo jogo do outro grande franchise da Nintendo: o "Super Mario 64").
Já suspirava desde 1996, aquando do lançamento da consola Nintendo 64 e do revolucionário "Super Mario 64", que fez as delícias de todos os fãs da Nintendo (eu incluído), com a adaptação a 3D da saga "Super Mario". Na altura, foi prometida "para breve" uma adaptação da minha saga preferida da Nintendo, que conheci através do seu primeiro jogo, "The Legend Of Zelda", de 1986, para a velhinha NES. Mas esse dia nunca mais chegava... Acreditem, não é fácil para um miúdo esperar mais de 2 anos por um jogo.
Mas o dia eventualmente chegou. E a ansiedade era tanta que, como é óbvio, ainda me lembro como se tivesse sido ontem.

26 de Dezembro de 1998. Sábado.
A meio da manhã, alguém toca à campainha.
"Que chatice...", pensei eu. No dia a seguir ao Natal, ainda por cima num fim-de-semana, alguém que toca a campainha àquela hora só podia ser família, ou outra visita qualquer, que me ia obrigar a levantar do sofá e a deixar os desenhos animados. A mando da minha mãe, lá me levantei e fui ver quem era...
Era o carteiro.
(CHOQUE)
"O carteiro?! Será que...", interroguei-me enquanto lhe abria a porta.
O jogo estava esgotado em todo o lado, desde o seu lançamento e por isso fui obrigado a encomendá-lo pelo correio.
"Será que...", pensava eu, nervoso, enquanto cumprimentava o Sr. Albano - carteiro de serviço do meu bairro.
Entretanto, o carteiro saca de um pacote da sua bolsa e diz sorridente: "Encomenda para Nuno Bento".
Eu não sei, mas devo ter arregalado os olhos de tal maneira, que ele se deixou rir e disse: "Então hoje faço eu de Pai Natal, não é?!".
Fez mesmo. Mas ainda melhor! Porque aquela prenda, já eu a andava a pedir ao Pai Natal há 2 anos e nada... E o Sr. Albano (um abraço para o simpático Sr. Albano, se ele me estiver a ler), com a sua motorizada que precisava de um empurrão para fazer as subidas do bairro, fez o serviço que o outro senhor de barbas, com as renas voadoras, não conseguiu.

Lá chamei a minha mãe para pagar a encomenda ao carteiro e a partir daquele momento, a minha vida nunca mais foi a mesma.
Da mesma maneira que por vezes uma música, um álbum, ou um filme muda as nossas vidas, também aquele jogo mudou a minha. Para sempre.

Desde então, joguei todos os títulos da série "The Legend Of Zelda", exceptuando os dois últimos ("Spirit Tracks" para a Nintendo DS e "Skyward Sword" para a Wii) que estão ali, na prateleira, ainda intactos. Ou seja, comprei os jogos (porque "tenho" que o fazer), mas por falta de tempo, ainda nem sequer lhes toquei. Com muita pena minha.

Mas se é verdade que já não tenho tempo para jogar, ainda tenho algum para ouvir música. E é por isso que, nos últimos dias, tenho andado a recordar a fantástica banda sonora de "The Legend Of Zelda: Ocarina Of Time".



Que saudades... Eu não sou muito dado a nostalgias e sinceramente, de uma forma geral, não tenho saudades daqueles tempos. Mas tenho saudades daqueles momentos. Quando estava sentado na sala, despreocupado da vida, concentrado num jogo que dava que pensar (na época era algo de alta exigência cognitiva), imerso no universo de Hyrule. Ouvir estas músicas depois de todos estes anos (já lá vão 14 !!!), transporta-me directamente para aqueles momentos.

As bandas sonoras dos jogos da saga "The Legend Of Zelda" são de uma longevidade que não tem qualquer paralelo no mundos videojogos. Ou melhor, até tem, mas apenas da outra saga que mencionei há pouco e é um ano mais velha - a saga do "Super Mario".
O compositor original das bandas sonoras para ambas as sagas é o mesmo: Koji Kondo.

Koji Kondo foi o primeiro compositor musical da Nintendo e foi ele o responsável pela criação de temas que ainda hoje fazem parte do imaginário de quem quer que já jogou os jogos do Mario ou Zelda.
Os seus primeiros trabalhos para estes franchises foram nos seus jogos originais: "Super Mario Bros.", de 1985 e "The Legend of Zelda", de 1986. Para estes jogos, Kondo compôs 3 a 4 melodias muito simples, em loops de 8-bit, que iam sendo repetidas continuamente ao longo do jogo. A ideia era criar um ambiente que não aborrecesse o jogador, funcionando também como um hook na sua mente.
A verdade é que na época, as melodias do "Super Mario Bros." e do "The Legend of Zelda" ficavam-me na cabeça durante dias... semanas seguidas.





Desde aí, a popularidade das melodias de Koji Kondo nunca parou de crescer e estas foram sucessivamente adaptadas às novas tecnologias das versões dos jogos para qualquer que seja a consola da última geração. Mais que isso, hoje estas melodias servem de base para longas peças orquestrais, que são tocadas em enormes salas de espectáculos e que esgotam em todo o Mundo.
De certeza que Kondo estava longe de pensar até onde chegariam os seus loops de 8-bit.

A banda sonora de "Ocarina Of Time" foi lançada em Dezembro de 1998, pouco depois do jogo. "The Legend Of Zelda: Ocarina Of Time" foi o último jogo para o qual Koji Kondo compôs integralmente a banda sonora. Até então, essa era uma tarefa massiva que estava a cargo de Kondo, nos jogos mais emblemáticos da Nintendo. A partir daí, Koji passou a trabalhar como supervisor de música criada por outros.

O tema que aqui fica é a música que se ouve no Templo dos Espíritos (Spirit Temple), situado ao fundo do deserto (Desert Colossus), no universo de "Ocarina Of Time".
A música carrega uma forte carga mística, ao mesmo tempo calmante e erótica.
Com influência indiana, faz lembrar um Pungi (as flautas que atraem as cobras), embora Koji Kondo tenha utilizado um sintetizador para o efeito.
É o meu tema preferido desta banda sonora, ou pelo menos, foi aquele que mais ecoou na minha mente, depois de recordar estas composições.

Na senda das sucessivas adaptações destas melodias originalmente criadas por Kondo, um grupo de fãs conhecidos como Zelda Reorchestrated (ZREO) gravou em 2009 todas as faixas da banda sonora de "The Legend Of Zelda: Ocarina Of Time", utilizando samples orquestrais. De seguida, ficam aqui as suas interpretações do "Spirit Temple Theme", bastante mais elaboradas que o original, mas não necessariamente melhores:



domingo, 17 de junho de 2012

Mihály Víg - "A Torinói Ló"



Hoje vou mudar um pouco a agulha ao blog.
Já há algum tempo que tenho a vontade de fazer uma "Semana de Cinema". Isto é, uma semana temática (à semelhança do que fiz com a "Semana Elton"), dedicada às minhas bandas sonoras preferidas.
Infelizmente, tal como um rol de outras ideias, isso ainda não foi materializado por manifesta falta de tempo. E infelizmente também, ainda não será desta.
Porém, ainda antes de levar esse conceito mais a sério, não resisto a falar do filme que assisti ontem no cinema: "O Cavalo de Turim" (nome original "A Torinói Ló").
Mais que um filme, uma obra de arte.

"A Torinói Ló" é o filme de despedida do cineasta húngaro Béla Tarr (assim anunciado pelo próprio, que afirma nada mais ter para dizer), nos últimos tempos recorrentemente aclamado como um dos grande mestres do cinema moderno.

Não é fácil falar de "A Torinói Ló". Não é fácil, porque o filme pode ser analisado por diversas perspectivas diferentes.
Podemos falar da fotografia, que é de uma beleza meticulosa; da música, que com um tema apenas de Mihály Vig, em constante repetição, assume um papel fundamental na mensagem do filme; da acção, quase inexistente e numa "quase-repetição", com pequenas nuances, também fundamentais na percepção da referida mensagem; dos metaforismos, que estão por todo lado, igualmente fundamentais na interpretação do filme; da fortíssima carga religiosa (ou melhor, de negação da religião) que o filme parece carregar.
Enfim, poderíamos falar de tanta coisa, que falar de "O Cavalo de Turim" daria para uma tarde de discussão e poderia resultar numa longa dissertação.

Para já, ainda abanado com a carga emocional que o filme despeja no espectador, digo apenas que foram 2 horas e meia de belíssimo cinema.
Cinema difícil, mas belíssimo.

A espaços, chega a ser "secante". É preciso ter estômago, paciência e não levar sono para a sala.
Mas quem estiver disposto a contemplar 2 horas e meia da melhor cinematografia (de um verdadeiro deleite para os olhos), onde se metaforiza sobre o abandono a que Deus vetou o Mundo e as pessoas que o habitam... Vale muito, muito o esforço.
O meu valeu, com toda a certeza.

"A Torinói Ló" é um filme de 150 minutos, a preto e branco e com muito pouco diálogo.
Objectivamente, não é um filme de fácil visualização e não é para todos. Não é um filme de "pipocas e coca-cola", vivendo numa filosofia de antagonismo com o cinema americano a que estamos habituados. Quando fala à imprensa, Béla Tarr deixa isso bem claro e não se coíbe de malhar no cinema do circuito comercial:

‎"I always had in mind that the audience is intelligent, sensitive and will understand – so I always did my best.
I can’t do some piece of shit because it’s just for kids.
The showbiz guys treat the audience as children, and they say this shit is good enough for them. Not true.
I respect the viewer. I respect my work. And I want to protect it. That means protecting it from me too…"

Para Béla Tarr, a cinematografia é tudo. Muito parcos em acção ou enredo, os filmes do realizador húngaro são o exemplo mais acabado daquilo que eu chamo de "filmes contemplativos". Se há filmes que merecem ser vistos no ecrã de cinema, esses são os de Béla Tarr.

Os planos nos seus filmes são longos, longos, longuíssimos, a desafiarem a calma do espectador mais paciente, mas valem pela sua beleza e pelo seu significado.
Para terem uma ideia do que estou a falar, "O Cavalo de Turim" tem a duração de 2 horas e meia (150 minutos) e apenas 30 planos. Isto equivale a uma média (repito: média!) de 5 minutos por plano. Tendo em conta que a média "normal" de duração de um plano é de cerca de 5 a 10 segundos, 300 segundos por plano é algo que, como referi, testa a paciência do espectador.
Conclusão: não convém levar sono para a sala de cinema.

Contas à parte, não é por acaso que Béla Tarr é quase unanimemente considerado, entre os cinéfilos, como um dos mais brilhantes realizadores da actualidade. Por isso, não admira que a chegada de "O Cavalo de Turim" às salas de cinema portuguesas tenha sido recebida com êxtase por toda a crítica de cinema portuguesa: no DN (por João Lopes e Flávio Gonçalves), no i, na RTP, no Ípsilon (Público), no C7nema, ou no Sétimo Continente.
Note-se que "O Cavalo de Turim" é o primeiro filme de Béla Tarr a estrear em Portugal. Não deixa de ser curioso que o primeiro filme do húngaro a chegar a Portugal seja o último capítulo da sua obra.
Da minha parte, o meu muito obrigado à Midas Filmes, por trazerem a Portugal, finalmente, os filmes de Béla Tarr.
Já não era sem tempo.

Em baixo está a cena de abertura de "A Torinói Ló", em que o narrador conta a história que serve de mote à acção do filme, seguida de uma sequência fabulosa, das mais belas que já vi no cinema, em que vemos "O Cavalo de Turim" (na realidade é uma égua) a puxar uma carroça ao som da hipnótica banda sonora de Mihály Vig.
Lindo, lindo, lindo.



Neste clip podemos ouvir toda a banda sonora que Mihály Vig compôs para "A Torinói Ló". Um só tema, que é repetido até à exaustão ao longo do filme. Um só tema que, com a sua melancolia, aperta mais e mais o coração e permanece na nossa cabeça, num teimoso loop depois do filme terminar, durante dias, semanas a fio...

"Hogy a lóval mi lett, nem tudjuk" (Do cavalo, nada sabemos)

O filme parte de um evento histórico: o cavalo que Friedrich Nietzsche viu ser espancado em Turim e depois do qual o filósofo fica traumatizado, perdendo a razão e a fala durante os 10 anos que se seguiram, culminando na sua morte. Este episódio não está relacionado com o que vemos no filme. Nietzsche está ali, mas apenas a nível filosófico.
Depois deste evento, o cavalo regressa a casa com o seu dono e o filme disseca até ao mais pequeno detalhe a vida vazia do cavalo, do dono e da sua filha.

A acção do filme é de tal forma minimalista, que somos obrigados a agarrar nos mais pequenos pormenores para conseguir "ligar os pontos" e perceber qual é, afinal, a mensagem de Béla Tarr.
Béla Tarr deu uma pista e revelou que "A Turin Horse" era uma reflexão sobre o "peso da existência humana". O "insustentável peso do ser".

A minha interpretação é que o filme é, essencialmente, uma reflexão religiosa. Ou melhor, uma reflexão niilista sobre a religião. O vazio da vida, para além daquilo que nós fazemos dela. Uma tese da descrença em qualquer fundamentação metafísica para a existência humana. Uma ilustração do tal "peso da existência humana".

A religião aparece em várias pistas que Béla Tarr vai dando ao longo do filme, como no monólogo do vizinho que aparece para pedir a Palinka, ou no livro que um cigano deixa à filha.
O abandono de Deus à humanidade. Como disse Nietzsche: “Deus morreu, mas a natureza humana é de tal ordem que é muito provável que, durante milhares de anos, haja grutas em que a sua sombra continuará a ser vista.”
Deus abandonou esta família numa "ilha" rodeada por uma tempestade inultrapassável. A "ilha" (na realidade, uma casa isolada, perdida no meio do nada) vai morrendo lentamente ao longo do filme, caminhando, tal como os seus habitantes, em direcção ao vazio, ao nada (em latim nihil, ou seja, "niilismo"). O caruncho que deixa de roer, o cavalo que deixa de comer, o poço que seca, a tempestade que redunda no silêncio, o preto e branco que redunda no... preto. E no final, a escuridão.

"Teljes csend borul a házra is.

VÉGE"