sábado, 7 de setembro de 2019

Bruce Springsteen — "The Promised Land" (Live at Passaic '78)

"There's a dark cloud rising from the desert floor, I packed my bags and I'm heading straight into the storm"


1. PIÈCE DE RÉSISTANCE

Já devem ter ouvido muitos contos e lendas acerca dos concertos de Bruce Springsteen. São todos verdade. Mas de todos os concertos, há um acima de todos os outros. E pluribus unum, como diz o emblema do Benfica; o unum aconteceu a 19 de Setembro de 1978 no Capitol Theater em Passaic, New Jersey e foi o primeiro de três concertos de "regresso a casa" para Bruce. Ele aparece na melhor forma de toda a sua carreira e com o melhor lote de canções, a promover o álbum "Darkness On The Edge Of Town".

A melhor noite de toda a carreira de Bruce Springsteen e uma das melhores gravações ao vivo de toda a história do Rock, que é finalmente editada oficialmente pelo Boss. O concerto foi transmitido nas rádios americanas, sendo mais tarde editado profusamente, mas em forma de bootleg, com o nome "Pièce de Résistance". "Pièce de Résistance" vem do francês e significa "obra-prima maior do artista" e não poderia haver nome melhor para esta gravação que resume todas as lendas já alguma vez contadas sobre os concertos de Bruce Springsteen. Ainda que tenha sido originalmente lançada em zona cinzenta da legalidade, a gravação ganhou tanta reputação, que se tornou num dos bootlegs mais vendidos de sempre e com ela Bruce ganhou fama de ser um animal de palco. 41 anos depois, Bruce decide recuperar as mastertapes e tirar o melhor desta lendária gravação. Tempo por isso de recordar como este bootleg mudou a minha vida há 10 anos e como deixou uma marca indelével para tudo o que se passaria a seguir.

2. THINGS THAT CAN ONLY BE FOUND IN THE DARKNESS ON THE EDGE OF TOWN

No final de 2008, a minha vida dava uma cambalhota completa. Ao mesmo tempo que acabava o curso no Técnico e começava uma vida rotineira de trabalho, estava prestes a sair da relação mais sólida e duradoura da minha vida, um amor que durou os 5 anos da minha estadia no Técnico. É um período que hoje relembro com enorme carinho e um passado com o qual estou em perfeita paz. Mas nem sempre foi assim. Nos meses que se seguiram àquele rompimento, vivi a agonia da dúvida se tinha feito o que era certo para mim. Não era uma agonia aguda, um sentimento que me fizesse disparar a marcação de um número de telefone. Era sim um ruído que se arrastava no dia-a-dia, uma interferência no sinal da minha rádio, um grão na imagem que persistia e teimava em não sair. Estava confuso, perdido e à procura de respostas sobre as grandes questões da vida. Nesse período, descobri Bruce Springsteen.

Já me conhecem, não sou de deixar os superlativos caídos no chão. Por isso vou ser directo: Bruce Springsteen salvou a minha vida entre 2008 e 2009, num exorcismo que começou em Dezembro de 2008 e culminou no dia 2 de Agosto de 2009, num Monte do Gozo a rebentar pelas costuras em Santiago de Compostela. Foi a primeira vez que vi Bruce Springsteen ao vivo e uma noite que definiu a minha vida e tudo o que eu queria dela daí em diante. Emoção. Honestidade. Seja ela em beleza, ou em bruteza. É isso que Bruce dá ao público nos seus concertos, porque é exactamente aquilo por que as pessoas estão esfomeadas.

Durante este período de exorcismo, havia um CD que rodava em loop no meu carro. Era a gravação do primeiro set do primeiro concerto de Passaic. Tudo o que eu tinha que ouvir de Bruce naquele momento estava condensado ali. Bruce tinha todas as respostas que eu procurava para as grandes questões da vida. Foi ele que me fez perceber porque é que eu tinha saído. E o que é que me esperava a seguir.
Saí, porque quis ver o que havia na escuridão da orla da cidade. E como Bruce avisou, tive que pagar o preço de querer coisas que só podem ser encontradas na escuridão da orla da cidade. Leiam aqui o que entenderem.

3. A LIGHT IN THE DARKNESS

Naquela gravação ao vivo de Passaic, Bruce enquadrou tudo o que eu sentia naquela altura. Deu nomes aos lugares metafóricos que existiam na minha cabeça ("the edge of town"). Deu nomes aos sentimentos de culpa que me assolavam ("When the night's quiet and you don't care anymore / Your eyes are tired and someone at your door / And you realize... you wanna let go") e resumiu o espírito da minha viagem de redenção, quando introduziu "Darkness On The Edge Of Town" em jeito de pregador: "At one time or another, everybody's gotta drive through the darkness on the edge of town".

Mas o conteúdo era apenas uma parte e não a parte fundamental desta gravação catártica. A forma, aqui, é tudo. A paixão que Bruce imprime nesta actuação é arrepiante. Desde a contagem para "Badlands" que entramos numa auto-estrada sensorial, onde nos agarram pelos colarinhos e somos submetidos a chuveiro de emoções que tão depressa nos imprimem excitação ("Badlands"), raiva ("Streets Of Fire"), alegria ("Spirit In The Night"), ambição ("Thunder Road", "The Promised Land"), desespero ("Meeting Across The River") e arrepios, quando Bruce Springsteen pergunta à audiência "New Jersey, are you ready to prove it all night?" e depois abre a guitarra. Tudo num espaço de 80 minutos.

4. MEETING ACROSS THE RIVER


O tempo passou e eu procurei refazer a minha vida, sempre carregando a tocha do Bruce no meu dia-a-dia. Foram os anos áureos do blog "Escolha Musical do Dia", que na altura escrevia quase diariamente (como era suposto) e que, não por acaso, tinha uma avalanche de posts de Bruce Springsteen. Para meu gáudio, em 2012 Bruce vem a Portugal, ao Rock In Rio, e eu tenho a oportunidade de o voltar a ver.

Nesta altura, uma "ex" que tinha sido uma má ideia desde o início (não é a do segundo capítulo, obviamente), tenta uma reaproximação com o pretexto de que queria também ver o Bruce Springsteen no Rock In Rio e como tal, pediu-me para eu a ajudar a preparar o concerto. Eu gravei-lhe o CD do Passaic e acordámos um encontro à beira rio, que eventualmente iria reatar a má ideia inicial.

Na semana seguinte, escrevi o mail:
"De: Nuno Bento
Enviado: 25 de maio de 2012 19:22
Para: (...)
Assunto: "Stuff this in your pocket, it will look like you're carrying a friend" 
Olá! Conforme te tinha prometido, aí está o alinhamento do CD que te gravei do tio Bruce, uma das minhas gravações ao vivo preferidas de sempre (só atrás do Live At Wembley '86 dos Queen): 
1. Intro (0:31)
2. Badlands (5:00)
3. Streets Of Fire (4:47)
4. Spirit In The Night (6:50)
5. Darkness On The Edge Of Town (4:14)
6. Independence Day (5:29)
7. The Promised Land (5:23)
8. Prove It All Night (9:30)
9. Racing In The Street (8:09)
10. Thunder Road (5:28)
11. Meeting Across The River (3:17)
12. Jungleland (9:39) 
Como podes ver pelo site, este CD é apenas o 1º set de um concerto de quase 4 horas que o Bruce deu na sua terra Natal (New Jersey) em 1978. Na altura, ele dava dois "sets" de hora e meia e depois voltava para mais meia-hora/uma hora de encores. Aquilo nunca mais acabava! 
No sábado não acabei de te contar a minha "história" sobre este concerto: há mais ou menos 4 anos fiquei apanhadinho pela música do tio Bruce e por acaso dei com este concerto. Foi daquelas coisas que mudou a minha vida. Durante 2 anos, esteve em constante repeat no meu carro e arrisco dizer que foi o álbum que mais ouvi (de sempre) no meu carro! Ok, eu tenho um uso muito fácil de superlativos, mas é verdade! Mudou a minha vida! Por isso, quando te gravei o CD, foi como se de uma "entrega" de algo importante e pessoal se tratasse. Agora que já foste apanhada também pela mística do tio Bruce, achei que estavas preparada para ouvir isto! 
E pronto, já tens aí tudo o que precisas para saber tudo do tio Bruce. O trabalho não me deixou enviar isto mais cedo, mas ainda vais bem a tempo!
Desejo-te um bom concerto e, uma vez que vais incentivada por mim, espero que gostes! 
Beijinhos,
Nuno"
Ai, ai, ai, Nuno. Que tontinho. O concerto do Bruce foi espectacular, como é óbvio. O retomar da má ideia é que foi um desastre. O que vale foi que a seguir a uma série de desastres, que culminaram num acidente de automóvel em Setembro desse ano, deu-se início à caminhada que me iria levar para a terra prometida.

5. THE PROMISED LAND


A continuação da história está contada aqui (por escrito) e aqui (na rádio). O caminho para a terra prometida continua. Sempre ao som do Bruce.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Freddie Mercury — "Love Me Like There's No Tomorrow" (2019 Remix)

"Anything can happen but we only have one more day together"


Mesmo a tempo dos festejos do seu aniversário, foi anunciada a nova colectânea de Freddie Mercury — "Never Boring" —, a qual vai ser lançada em duas versões: uma compilação que reúne os temas mais conhecidos da carreira a solo (incluindo a recente remistura de "Time") e uma caixa que junta esta compilação, às versões revisitadas dos dois álbuns que perfazem a sua discografia a solo ("Mr. Bad Guy" de 1985 e "Barcelona" de 1988), mais um DVD e um Blu-Ray com vídeos. O nome do projecto é retirado do famoso pedido que Freddie Mercury fez a Jim Beach, manager dos Queen, quando o nomeou o seu executor testamentário e representante legal na banda: "Do whatever you want with my music, just never make me boring". Foi um pedido que nem sempre foi satisfeito, mas certamente que tal não foi por falta de vontade do Jim Beach.

Os Queen, os verdadeiros, foram votados ao esquecimento pelo Dr. Brian May e pelo Sr. Roger Taylor, uma vez que estão demasiado ocupados a viver o sonho Americano com o Adam Lambert, nas asas do sucesso do filme "Bohemian Rhapsody". Já vamos assim para o segundo ano consecutivo sem um lançamento de arquivo dos Queen. O cenário é ainda mais desanimador, se pensarmos que o último produto verdadeiramente interessante já remonta a 2014 — as caixas do "Live At The Rainbow" — e que este ano tinha sido cogitado o lançamento da caixa de "Live Killers", que iria reunir vários concertos em audio / video da segunda metade dos anos 70.

Se no ano passado havia a desculpa do filme, que estava a canalizar todas as atenções da máquina dos Queen — a Queen Productions Limited (QPL) —, este ano a única explicação é mesmo o completo desinteresse de Brian e Roger pela sua própria banda. O Conselho de Estado da QPL é neste momento formado por Brian May, Roger Taylor, John Deacon e Jim Beach, que representa Freddie Mercury. O voto do John é favorável por defeito; ele tem poder de veto, mas raramente se opõe às decisões dos colegas (até porque continua a receber). O voto do Roger é, por defeito, o que quer que o Brian quiser. E o voto do Jim é, por respeito, também favorável à decisão do Brian.

Como já perceberam, esta estrutura significa que, na prática, quem manda nos Queen é o Dr. Brian May. Por isso, sempre que ele tem uma ideia para um novo lançamento dos Queen, essa ideia é executada se e só se for à sua maneira. Às vezes isto resulta bem ("Made In Heaven", "Live At The Rainbow"), outras vezes nem por isso ("News Of The World 40th", "Queen Forever"). Se ele não tem ideia nenhuma, nada se pode fazer com o nome dos Queen na habitual janela de lançamentos do Natal. O problema é que a editora paga à Queen Productions Limited a peso de ouro para lançar os seus produtos e se não há produtos, há um problema. E é aqui que Jim Beach levanta a mão para falar no Conselho de Estado dos Queen — "Então e se voltássemos a lançar os álbuns a solo do Freddie?". E é assim que nasce "Never Boring". O Jim Beach faz o que pode para carregar, agora sozinho, a tocha do Freddie.



O catálogo a solo de Freddie Mercury já foi revisitado e largamente explorado desde a sua morte. A caixa de 12 discos "The Solo Collection", lançada em 2000, é um documento exaustivo da sua carreira que, na prática, contou apenas com 2 álbuns. Nesta caixa, os álbuns aparecem nas suas versões originais.
Desde então, "Barcelona" foi revisitado em 2012 e totalmente regravado com uma orquestra real, uma vez que o álbum original tinha usado sintetizadores para recriar as orquestrações.
Se viram o filme "Bohemian Rhapsody", reconhecerão "Mr. Bad Guy" como o álbum a solo de Freddie que separou os Queen e correu muito mal. Se a parte dramática da separação da banda foi largamente inventada no filme, o álbum correu mesmo muito mal. É de longe a pior coisa que o Freddie fez em toda a sua carreira. Desde a sua morte, a maior parte das faixas deste álbum já foram revisitadas: para a compilação "The Freddie Mercury Album" (1992) foram remisturados "Foolin' Around" e "Your Kind Of Lover" por Steve Brown, "Let's Turn It On" e "My Love Is Dangerous" por Jeff Lord-Alge, "Mr. Bad Guy" por Brian Malouf e "Living on My Own" por Julian Raymond; "Made in Heaven" e "I Was Born to Love You" foram regravados pelos Queen para o álbum "Made In Heaven" em 1995; "There Must Be More to Life Than This", que originalmente havia sido gravado em dueto com Michael Jackson, foi (mal) reconstruído para a compilação "Queen Forever" em 2014. Tirando este último, surpreendentemente mal executado pelos Queen, todas as remisturas e regravações são superiores aos originais.

O álbum "Mr. Bad Guy" é de facto a ovelha negra do portfolio de Freddie Mercury. Nisto, é preciso dar razão ao Dr. Brian May, quando este pintou o disco como um enorme falhanço comercial e artístico no filme do ano passado. Não há nenhum problema com a composição de Freddie e muito menos com a sua voz, mas há sim um enorme problema com os arranjos, instrumentação e produção. O Freddie precisava mesmo de uma voz que lhe dissesse que "não". Ok Brian, tinhas razão.

É por isso com agrado que vejo que finalmente "Mr. Bad Guy" será totalmente revisitado em 2019 para inclusão na caixa de "Never Boring" (e será lançado em separado também como "Special Edition"). Juntando a versão de 2019 de "Mr. Bad Guy" e a versão de 2012 de "Barcelona", a caixa "Never Boring" torna-se assim complementar à já referida "The Solo Collection" de 2000, o que vai obrigar os fãs (onde me incluo, obviamente) a levá-la para a sua colecção.

Ouvindo a nova versão "Love Me Like There's No Tomorrow", um dos temas que ainda não tinha sido revisitado antes (o outro é "Man Made Paradise"), parece que se levanta um véu na paisagem sonora e agora a voz de Freddie é muito mais clara. O piano foi puxado para a frente da mistura e pela primeira vez, não parece que Freddie está a cantar noutra sala.

É curioso que ninguém se tivesse lembrado de pegar ainda em "Love Me Like There's No Tomorrow", um dos seus temas mais sinceros, profundos e ultra-pessoais. Freddie disse um dia que gostava de escrever canções sobre o que sentia e o que sentia com muita muita força eram as emoções e o amor. Este é dos casos mais flagrantes disso mesmo. Freddie canta sobre o drama da última noite, da noite de despedida, antes da inevitável separação. É uma separação cuja força ele sente ser maior que ele, mas que não inviabiliza o o despejo do depósito das emoções e dos amor, enquanto há tempo. Como se não houvesse amanhã.