quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Queen - "You Take My Breath Away"

"Look into my eyes and you'll see I'm the only one"

A minha vida adulta numa música dos Queen

1. A melhor canção de amor alguma vez escrita

Penso que nesta fase avançada de evolução civilizacional, já deve ser unânime e axiomaticamente aceite que a melhor canção de amor alguma vez escrita é "You Take My Breath Away" dos Queen. Quem não corrobora desta doutrina, ou nunca ouviu a canção (façam favor), ou anda com o coração parado e ainda não foi avisado.

Vem esta observação a propósito da chegada dos dias curtos, das primeiras chuvas e das temperaturas mais baixas, que eu recebo sempre de duas formas: com uma camisolinha de malha e com o álbum "A Day At The Races" em volume máximo à saída do trabalho, já de noite. A introdução do álbum anuncia a chegada de algo perigoso e sombrio, mas majestoso e irresistível. O que quer que isso signifique em concreto.

Para mim, significa a minha vida. O álbum "A Day At The Races" acompanhou as várias fases da minha vida adulta, servindo de pano de fundo para uma série de momentos-chave que anunciavam uma mudança. A própria chegada do álbum à minha vida foi uma obra do acaso e do absurdo ou, por que não, do destino.

2. Puberdade

Tinha 13 anos e vivia eu o auge da minha puberdade reprimida. Torrentes de transformações em mim e em todos os que me rodeavam, que me deixavam confuso, perdido e votado ao abandono como a única pessoa sã que restava no mundo. Fui almoçar com o meu Pai à hamburgaria do Centro Comercial de Santiago, em Castelo Branco. Hoje, é (mais) um centro comercial decrépito, a apodrecer com uma epidemia de lojas fechadas, mas no início de 1999 borbulhava cheio de vida, cores e cheiros. Cheiros esses que vinham em grande parte da hamburgaria do "Chico Omelete", que servia uns hambúrgueres deliciosos, acompanhados de umas batatas fritas carregadas de sal e igualmente irresistíveis. Passaram-se 17 anos e - como é que é possível - ainda me consigo lembrar vividamente daquele cheiro que nunca mais cheirei. Mas divago. Voltemos à mesa onde me sentava com o meu Pai, nos bancos altos de metal.

Esta era a fase em que começava o meu conflito irresolúvel com o meu Pai. Já começava a ter opiniões (contrárias às dele), já me achava nietzschianamente independente e pior, já queria mandar. As nossa conversas acabavam invariavelmente em discussões feias e diferenças irreconciliáveis, menos quando falávamos sobre um assunto: música.

Na música, a nossa sintonia era (ainda) total. A viver a minha fase de auto-descoberta e descoberta do mundo, já sentia que o que tinha em casa não chegava. Precisava de mais. Acima de tudo, queria satisfazer a minha curiosidade e mergulhar a fundo na minha banda preferida. Queria saber tudo sobre os Queen, conhecer o que havia para lá dos "Greatest Hits" e do "Live At Wembley".
Os olhos do meu Pai arregalaram-se e naqueles bancos vivemos um raro momento de bingo paternal. Ali falou-me de histórias lendárias de cassetes dos Queen que haviam vencido centenas, milhares de quilómetros até às suas mãos nos anos 70 e que ele nunca mais vira ou ouvira. Ali enumerou-me nomes de álbuns, que eu fingi não conhecer para não lhe moderar a luz do palco. Preciosidades que eu tinha que ouvir e que também ele tinha curiosidade em voltar a ouvir.

À cabeça do tesouro, estava um álbum: "A Night At The Opera". Era ali que tínhamos que começar. E foi assim que enquanto o meu Pai tomava um café e fumava um cigarro no restaurante, me autorizou a ir à loja de discos do centro comercial - local sagrado das minhas peregrinações ao centro da cidade - encomendar o CD ao Sr. João. Quando fiz o pedido, o Sr. João não percebeu bem o meu inglês e pediu-me para escrever no seu caderninho, que trazia a Lisboa como cábula do que tinha que comprar naquela semana. Como já devem ter adivinhado, por obra do destino, do acaso, ou do absurdo, naquele caderno ficou escrito "A Day At The Races".
Juro que até hoje não sei como é que aquilo aconteceu. Saí da loja do Sr. João convencido que tinha encomendado o álbum preferido do meu Pai e afinal encomendei o meu álbum preferido. Só que eu ainda não sabia, porque nunca o tinha ouvido.

3. Adolescência

A partir desse dia, "A Day At The Races" acompanhou-me inexoravelmente em todas as transformações da minha vida, como quem anuncia uma nova fase. "You Take My Breath Away", em particular, serviu sempre como pano de fundo a momentos pivotais da minha sempre turbulenta relação com o sexo feminino.
Quando a ouvi pela primeira vez, o minimalismo asfixiante da música deixou-me perturbado. Nunca ouvira nada assim, tão simples (um homem, um piano e o silêncio) e tão poderoso ao mesmo tempo. Nos primeiros tempos, saltava a segunda faixa do CD, directamente para "Long Away". Até que me deixei conquistar por "You Take My Breath Away", to the point of obsession. Sonhava com o dia em que conhecesse uma miúda a quem pudesse cantar aquela letra romântico-obsessiva que falava de mim e do que eu queria para a minha vida.
Os anos passaram e esse dia nunca mais chegava. Olhava à minha volta e não via ninguém que pudesse merecer, muito menos perceber a magnitude da canção. Até que o dia chegou.

4. Adulto

Aos 16 anos calhou na minha turma uma miúda mais velha (repetente, portanto) que carregava uma escuridão enigmática e caminhava com uma majestosidade única na escola. Ela sim, podia perceber; parecia encaixar perfeitamente naquela canção. A miúda mais velha tornar-se-ia poucas semanas depois na minha primeira namorada (e deu o mote para a maioria das restantes).
Na vertigem da urgência, sem querer perder tempo nem deixar fugir a oportunidade, logo na primeira noite de namoro citei-lhe os versos de "You Take My Breath Away" na íntegra, enquanto estávamos sentados e agarrados nos bancos de jardim em frente ao liceu. Não sem que ela a meio me perguntasse se eu "ia mesmo cantar a música toda". Como se isso estivesse em questão. Nem que naquela hora passasse ali um tornado, ninguém arredava pé daquele banco sem que eu terminasse os versos do Freddie Mercury. Mas convenhamos, aquela pergunta já não augurava nada de bom. 
Durámos um mês.

Um ano mais tarde, noutro banco de jardim, em frente a outra escola, a mesma cena. Desta vez estava na Alameda, em frente ao Instituto Superior Técnico. Era o segundo dia de namoro (também com uma miúda mais velha, go figure) e sem me aperceber que estava a repetir a efeméride de há um ano em circunstâncias estranhamente similares, voltei a cantar "You Take My Breath Away" integralmente. Num trágico quatro em linha de coincidências, também ela me perguntou: "vais cantar tudo até ao fim?". Devia ter lido os sinais. 
Ainda assim, namorámos mais 5 anos. Nada mau.

Fast-forward 12 anos e dos bancos da Alameda, passamos para os bancos do meu carro. Desta feita não sou eu que canto, deixo as honras para o Freddie. Pela terceira vez na minha vida, partilho "You Take My Breath Away" com uma miúda e agora, pela primeira vez, ela não pergunta quando é que a música acaba. Qual banda sonora profética, volta a marcar o início de mais uma fase na minha vida. E feliz. 
Durou quase 2 anos.

Pode ser que à quarta seja de vez.