domingo, 17 de junho de 2012

Mihály Víg - "A Torinói Ló"



Hoje vou mudar um pouco a agulha ao blog.
Já há algum tempo que tenho a vontade de fazer uma "Semana de Cinema". Isto é, uma semana temática (à semelhança do que fiz com a "Semana Elton"), dedicada às minhas bandas sonoras preferidas.
Infelizmente, tal como um rol de outras ideias, isso ainda não foi materializado por manifesta falta de tempo. E infelizmente também, ainda não será desta.
Porém, ainda antes de levar esse conceito mais a sério, não resisto a falar do filme que assisti ontem no cinema: "O Cavalo de Turim" (nome original "A Torinói Ló").
Mais que um filme, uma obra de arte.

"A Torinói Ló" é o filme de despedida do cineasta húngaro Béla Tarr (assim anunciado pelo próprio, que afirma nada mais ter para dizer), nos últimos tempos recorrentemente aclamado como um dos grande mestres do cinema moderno.

Não é fácil falar de "A Torinói Ló". Não é fácil, porque o filme pode ser analisado por diversas perspectivas diferentes.
Podemos falar da fotografia, que é de uma beleza meticulosa; da música, que com um tema apenas de Mihály Vig, em constante repetição, assume um papel fundamental na mensagem do filme; da acção, quase inexistente e numa "quase-repetição", com pequenas nuances, também fundamentais na percepção da referida mensagem; dos metaforismos, que estão por todo lado, igualmente fundamentais na interpretação do filme; da fortíssima carga religiosa (ou melhor, de negação da religião) que o filme parece carregar.
Enfim, poderíamos falar de tanta coisa, que falar de "O Cavalo de Turim" daria para uma tarde de discussão e poderia resultar numa longa dissertação.

Para já, ainda abanado com a carga emocional que o filme despeja no espectador, digo apenas que foram 2 horas e meia de belíssimo cinema.
Cinema difícil, mas belíssimo.

A espaços, chega a ser "secante". É preciso ter estômago, paciência e não levar sono para a sala.
Mas quem estiver disposto a contemplar 2 horas e meia da melhor cinematografia (de um verdadeiro deleite para os olhos), onde se metaforiza sobre o abandono a que Deus vetou o Mundo e as pessoas que o habitam... Vale muito, muito o esforço.
O meu valeu, com toda a certeza.

"A Torinói Ló" é um filme de 150 minutos, a preto e branco e com muito pouco diálogo.
Objectivamente, não é um filme de fácil visualização e não é para todos. Não é um filme de "pipocas e coca-cola", vivendo numa filosofia de antagonismo com o cinema americano a que estamos habituados. Quando fala à imprensa, Béla Tarr deixa isso bem claro e não se coíbe de malhar no cinema do circuito comercial:

‎"I always had in mind that the audience is intelligent, sensitive and will understand – so I always did my best.
I can’t do some piece of shit because it’s just for kids.
The showbiz guys treat the audience as children, and they say this shit is good enough for them. Not true.
I respect the viewer. I respect my work. And I want to protect it. That means protecting it from me too…"

Para Béla Tarr, a cinematografia é tudo. Muito parcos em acção ou enredo, os filmes do realizador húngaro são o exemplo mais acabado daquilo que eu chamo de "filmes contemplativos". Se há filmes que merecem ser vistos no ecrã de cinema, esses são os de Béla Tarr.

Os planos nos seus filmes são longos, longos, longuíssimos, a desafiarem a calma do espectador mais paciente, mas valem pela sua beleza e pelo seu significado.
Para terem uma ideia do que estou a falar, "O Cavalo de Turim" tem a duração de 2 horas e meia (150 minutos) e apenas 30 planos. Isto equivale a uma média (repito: média!) de 5 minutos por plano. Tendo em conta que a média "normal" de duração de um plano é de cerca de 5 a 10 segundos, 300 segundos por plano é algo que, como referi, testa a paciência do espectador.
Conclusão: não convém levar sono para a sala de cinema.

Contas à parte, não é por acaso que Béla Tarr é quase unanimemente considerado, entre os cinéfilos, como um dos mais brilhantes realizadores da actualidade. Por isso, não admira que a chegada de "O Cavalo de Turim" às salas de cinema portuguesas tenha sido recebida com êxtase por toda a crítica de cinema portuguesa: no DN (por João Lopes e Flávio Gonçalves), no i, na RTP, no Ípsilon (Público), no C7nema, ou no Sétimo Continente.
Note-se que "O Cavalo de Turim" é o primeiro filme de Béla Tarr a estrear em Portugal. Não deixa de ser curioso que o primeiro filme do húngaro a chegar a Portugal seja o último capítulo da sua obra.
Da minha parte, o meu muito obrigado à Midas Filmes, por trazerem a Portugal, finalmente, os filmes de Béla Tarr.
Já não era sem tempo.

Em baixo está a cena de abertura de "A Torinói Ló", em que o narrador conta a história que serve de mote à acção do filme, seguida de uma sequência fabulosa, das mais belas que já vi no cinema, em que vemos "O Cavalo de Turim" (na realidade é uma égua) a puxar uma carroça ao som da hipnótica banda sonora de Mihály Vig.
Lindo, lindo, lindo.



Neste clip podemos ouvir toda a banda sonora que Mihály Vig compôs para "A Torinói Ló". Um só tema, que é repetido até à exaustão ao longo do filme. Um só tema que, com a sua melancolia, aperta mais e mais o coração e permanece na nossa cabeça, num teimoso loop depois do filme terminar, durante dias, semanas a fio...

"Hogy a lóval mi lett, nem tudjuk" (Do cavalo, nada sabemos)

O filme parte de um evento histórico: o cavalo que Friedrich Nietzsche viu ser espancado em Turim e depois do qual o filósofo fica traumatizado, perdendo a razão e a fala durante os 10 anos que se seguiram, culminando na sua morte. Este episódio não está relacionado com o que vemos no filme. Nietzsche está ali, mas apenas a nível filosófico.
Depois deste evento, o cavalo regressa a casa com o seu dono e o filme disseca até ao mais pequeno detalhe a vida vazia do cavalo, do dono e da sua filha.

A acção do filme é de tal forma minimalista, que somos obrigados a agarrar nos mais pequenos pormenores para conseguir "ligar os pontos" e perceber qual é, afinal, a mensagem de Béla Tarr.
Béla Tarr deu uma pista e revelou que "A Turin Horse" era uma reflexão sobre o "peso da existência humana". O "insustentável peso do ser".

A minha interpretação é que o filme é, essencialmente, uma reflexão religiosa. Ou melhor, uma reflexão niilista sobre a religião. O vazio da vida, para além daquilo que nós fazemos dela. Uma tese da descrença em qualquer fundamentação metafísica para a existência humana. Uma ilustração do tal "peso da existência humana".

A religião aparece em várias pistas que Béla Tarr vai dando ao longo do filme, como no monólogo do vizinho que aparece para pedir a Palinka, ou no livro que um cigano deixa à filha.
O abandono de Deus à humanidade. Como disse Nietzsche: “Deus morreu, mas a natureza humana é de tal ordem que é muito provável que, durante milhares de anos, haja grutas em que a sua sombra continuará a ser vista.”
Deus abandonou esta família numa "ilha" rodeada por uma tempestade inultrapassável. A "ilha" (na realidade, uma casa isolada, perdida no meio do nada) vai morrendo lentamente ao longo do filme, caminhando, tal como os seus habitantes, em direcção ao vazio, ao nada (em latim nihil, ou seja, "niilismo"). O caruncho que deixa de roer, o cavalo que deixa de comer, o poço que seca, a tempestade que redunda no silêncio, o preto e branco que redunda no... preto. E no final, a escuridão.

"Teljes csend borul a házra is.

VÉGE"

2 comentários:

  1. Olá Nuno.

    Muito obrigado pela menção do meu texto no seu blogue. Gostei bastante do artigo. Não tenciono publicar um texto escrito especialmente para O Sétimo Continente. Para além de já estar online o do DN será divulgado um outro da minha autoria, um pouco mais exaustivo, sobre o realizador e O Cavalo de Turim. Onde? Numa nova revista de cinema online a sair do forno muito em breve... E para já não posso dar mais detalhes ;) E se gostou da música do Mihály Vig penso que terá todo o gosto em ler a revista.

    Um abraço e obrigado.

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    1. Flávio, não tem nada que agradecer. Eu é que agradeço a sua visita aqui a este pequeno e perdido espaço da blogoesfera.

      Já leio o seu trabalho há algum tempo e o Sétimo Continente é sempre uma das minhas principais referências para a escolha dos próximos filmes que vou assistir, uma vez que habitualmente partilhamos a mesma opinião.
      Isto para além do facto de apreciar muito a sua escrita, tanto no conteúdo, como na forma apaixonada como fala de Cinema. E tendo em conta que o meu Cinema de eleição vem de realizadores como Lynch, Kubrick, Noé, ou Haneke, encontro sempre motivos de interesse na leitura do seu blog.

      Fico então à espera da nova publicação!

      Abraço.

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