quarta-feira, 23 de setembro de 2015

David Gilmour - "Faces Of Stone"



Rattle That Broken Fout Tour Journal

Tomo III - Gilmour e Gladiadores no Arena di Verona

As lutas de gladiadores que animavam o Império Romano tinham quatro desfechos possíveis para os intervenientes: ou ganhavam; ou perdiam e morriam em combate; ou perdiam e o público ordenava-lhes a morte apontando o polegar para baixo; ou perdiam e o público poupava-os por bravura ou misericórdia. De todos os desfechos, o quarto era o mais raro. Ao sentar-me nas bancadas de pedra do Arena di Verona para um espectáculo expectavelmente menos sanguinário, percebi porquê.

O concerto de David Gilmour no Arena di Verona foi uma experiência surreal, para contar aos filhos e netos. Foi um regresso aos tempos de glória do Império, das lutas de gladiadores, quando havia uma contagem de baixas do público no fim do espectáculo. Muito álcool, muita droga à minha volta e nem sequer faltou a cena de porrada para animar. Surreal, mesmo.

Mas comecemos pelo início. Sair de Pula a um Domingo (o concerto fora no Sábado) e chegar a Verona para o segundo concerto não foi fácil. Desde logo porque não havia transportes. Autocarros para o estrangeiro, ao Domingo, nem vê-los. Aviões, só acima dos 1 000€. A alternativa eram os barcos. Mas como estávamos em Setembro — época baixa — só havia um ferry a sair da Croácia para Veneza nesse dia e era em Porec, a quase 100 kms de Pula. Ah e era às 7 da manhã. A minha única hipótese era assim apanhar um autocarro que saía de Pula às 5 da manhã e rezar para que ele não se atrasasse.
Bem dito, bem feito: o autocarro chega a Pula às 5:30 da manhã. meia hora de atraso. Foda-se. Furioso, dirijo-me ao condutor, explicando-lhe que preciso de estar em Porec às 7:00, misturando discurso em inglês com vernáculo em português. Imaginem um "I need to be there at seven, caralho!", à boa tradição benfiquista do Toni no Irão.

Talvez motivado pelo vernáculo que ele não entendia, o condutor arranca numa corrida desenfreada rumo a Porec, tirando vantagem do parco trânsito matutino, mas numa velocidade claramente desaconselhada para a segurança do veículo e dos seus ocupantes. Pouco antes da paragem em Rovinj... PA-PAUM!! ...o autocarro tropeça num buraco que deixa a suspensão num perceptível mau estado. Resultado: paramos em Rovinj, esvazia-se o autocarro e espera-se pelo seguinte. O tempo que o condutor recuperou no caminho, esfuma-se novamente. Mas ele tranquiliza-me que chegaremos a Porec a tempo, mesmo contra as leis da Matemática e do Google Maps, com o ar assustadoramente assertivo de quem relativiza as regras de trânsito. Mas chegamos mesmo: às 6:55, estou a Porec... para descobrir que o ferry vinha uma hora atrasado.

Chegado a Veneza, regresso à Praça de São Marcos para recordar o concerto que me introduziu aos Pink Floyd aos 5 anos. Mas não sem antes virar um pequeno almoço à campeão: uma caneca de litro.



Sigo para Verona. Segundo concerto do David Gilmour e logo num dos recintos que sempre quis visitar: a Arena di Verona, onde os Simple Minds gravaram um vídeo histórico nos late 80s. Depois da Arena de Pula, é mais um concerto num anfiteatro romano.


Fast-forward para o concerto. À chegada à Arena di Verona, não há lugar para me sentar. Ou o tráfico de bilhetes esteve ao rubro, ou os italianos venderam mais um terço da capacidade da Arena, na esperança que "cabe sempre mais um". Ando eu de canadianas, a mancar exageradamente para chamar a pena de algum bom samaritano, mas ninguém se oferece sequer para se desviar um bocadinho (não há cadeiras, o cu ia mesmo na pedra). É cada um por si. Depois lá me consigo sentar numas escadas onde nem sequer posso ver o David, que está tapado pelas colunas. É como os lugares da ACAPO no estádio do Alvalade. Isto está bonito.

  
Penso em protestar, mas como? Não há ninguém indignado com a organização, todos agem como se fosse tudo normal. E protestar com quem? Seguranças? Stewards? Nem vê-los. Se houvesse problemas à séria, isto era um festival de pancadaria à antiga, com corpos a rebolar pelas bancadas de pedra até lá abaixo e cânticos em latim de sacrifícios divinos, como nos bons velhos tempos do Império. Há uma equipa da cruz vermelha, sim. Mas passam o concerto a filmar o palco, sentadinhos em lugares de honra. Maravilha.
O que não falta são tipos a vender cerveja. É vê-los a subir aquelas bancadas de pedra íngremes sem qualquer protecção ou preocupação. Não pode faltar cerveja com fartura, para satisfazer este público dos gladiadores, que bebe como se a bexiga não tivesse limite.
Se nas bancadas há gente a mais, lá à frente não há gente nenhuma. Ou as primeiras filas faltaram ou o David tem medo destes italianos, porque nunca vi um espaço tão grande entre a primeira fila e o palco. 

Neste cenário reminiscente do Século I, penso que só falta mesmo uma boa cena da pancada. E ela aí está! Mesmo na minha fila. O que vale é que a porrada se dá entre um tipo que é um cruzamento entre o Totti e o Michael Scofield e um que parece o Fernando Mendes do Preço Certo em Euros. O Fernando Mendes viu à partida que não tinha grande hipótese, mas ainda assim levou três tabefes de mão fechada, mesmo ao lado da mulher e dos filhos. Não contente, o Totti Scofield ainda lhe arrancou os óculos, atirou-os para o chão e pisou-os repetidamente. Só visto.

Dito isto, por mais incrível que pareça, Verona foi uma experiência interessante. O concerto perdeu obviamente para Pula, mas só porque depois de chegar ao Olimpo, só se pode descer. A performance da banda até foi melhor: David já não borrou a pintura tantas vezes (só o solo de "The Blue" é que foi destruído pela distorção nos agudos) e até tivemos um "Comfortably Numb" para a história. Mas as distracções à minha volta eram tantas, que o espectáculo no palco era apenas um dos factores de interesse.


Mais que interessante, Verona foi uma experiência surreal. A Arena é uma sala de espectáculos lindíssima, um anfiteatro romano clinicamente preservado, que nos leva até aos tempos dos gladiadores. Não há guardas, não há cadeiras, não há protecções, nada. É tudo como dantes. E se mais alguma coisa faltasse, a negligência da organização e do público transporta-nos até à época do Império. É uma viagem no tempo, como se Caligula ainda ditasse leis na Lusitânia.

Se alguém disse que o Rock está morto, tem que vir a Itália. Onde haviam combates de gladiadores, há hoje concertos Rock. A sede de sangue é a mesma.

Próxima paragem: Florença.

3 comentários:

  1. A minha experiência deste concerto foi mesmo completamente diferente da tua. Tudo bastante tranquilo, sentadinha num lugar marcado :P mas tu tens a vantagem de 3 concertos vs 1, vá ;)
    A única coisa que me deixou mais indignada foi a quantidade de gente sempre agarrada ao telemóvel e nem era para tirar foto, muitas vezes era para ver as actualizações do FB o_O Como é possível, num concerto destes?!

    Eu tive de tirar 4 ou 5 fotos no início, mesmo do género: "aconteceu-me uma coisa completamente improvável na vida: vi o David Gilmour ao vivo!!" :P e sei bem que isso se deveu também a ti ("anda lá, não podes perder uma oportunidade destas!!" algo do género). Ainda bem que decidi ir, em Março.
    Foi um daqueles momentos que vou levar comigo pela vida, o som da guitarra dele, aquela noite, aquela cidade, tudo... Uma das noites mais incríveis da minha vida. Que concerto, que concerto, fdx!

    Grande odisseia a tua para chegares a Verona lol muito bom.

    Mais um *daqueles* posts ;)

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    1. Eu adorava ter tido uma experiência como a tua, mas em retrospectiva, tendo estado em 3 concertos, nem me importo de ter estado na bancada dos gladiadores em Verona. Como estava de lado do palco e não podia ver o David, passei grande parte do concerto a olhar para a Arena. Uma visão espectacular :)

      Quanto aos telemóveis, o que eu fazia era, de quando em quando sacava do meu e num movimento de Parkinson, disparava 20 a 30 fotos. Depois ia logo para o bolso. Um espectáculo destes é demasiado majestoso para estar a olhar para o telemóvel.

      Falando nisso, à minha frente (no lanço de escadas imediatamente em baixo) estava um bacano que passou o telemóvel a mandar mensagens. Uma delas tinha como remetente "MAMMA". E dizia qualquer coisa como "está tudo bem, tudo tranquilo aqui". O que era curioso, na medida em que tranquilidade era das poucas coisas que não se passava ali, ao contrário dos charros que ele passou o concerto a fumar. :P

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    2. lol mas se fores a ver para ele estava mesmo tudo tranquilo, todo charrado :P

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