terça-feira, 22 de setembro de 2015

David Gilmour - "In Any Tongue"



Rattle That Broken Fout Tour Journal

Tomo II - Um Fariseu em Pula, três contactos

Conta o Novo Testamento que quando os Fariseus conheceram Jesus, não ficaram muito impressionados. Os Fariseus sabiam de estórias de um Rei cujo reino "não fazia parte deste mundo", um Rei dos Reis, mas quando lhes apareceu, Jesus era "apenas" um homem mal vestido que falava de maneira diferente. "O quê? É isto?! É este gajo? Este gajo está vestido pior que nós!", terão protestado os Fariseus, num qualquer dialecto hebraico.

Quando eu tive o David Gilmour à distância da minha canadiana na Arena de Pula, por três ocasiões diferentes, lembrei-me deste episódio bíblico. Durante toda a minha vida, tive Gilmour como um ser divino, criador de sons que me definiram, autor de obras que engrandeceram a minha existência, um ser perfeito. Mas agora, este ser divino estava ali, tão perto de mim, mais perto do que eu poderia imaginar quando aos 5 anos de idade, o meu Pai me submetia repetidamente ao concerto de Veneza até eu decorar a arquitectura da Praça de São Marcos. Pude-lhe ver as rugas, o medo de ser engolido pela multidão, a insegurança de quem já não tocava ao vivo há 10 anos, a preocupação de quem pelejava para que nada falhasse, o ar frágil de quem borrou a pintura numa série de solos e o alívio de quem chegou ao fim da primeira noite deixando tudo o que podia em palco. Vi tudo como um qualquer Fariseu que teve o acaso de se cruzar com aquele a quem chamavam o Rei dos Reis.

E assim pude ver que David Gilmour é "apenas" um homem vestido com uma t-shirt preta. Um homem com fragilidades, medos e dúvidas. David é, afinal, humano.

Mas vamos ao princípio. Recuemos 24 horas.

Chego a Pula no dia anterior ao concerto e vou directo para a Arena. Estão a montar o palco e pasme-se, as visitas turísticas ainda estão abertas!
Entro.
WOWOWOW!!! O que é isto? Caixas dos Pink Floyd?!


Ando no meio do equipamento do David Gilmour, a maioria ainda remonta aos tempos dos Pink Floyd. Quase todas as caixas têm a inscrição PINK FLOYD WORLD TOUR. Nem acredito que me deixam andar ali.
Depois de uma hora estarrecido em frente ao equipamento com um estranho sentimento de "foda-se, estou mesmo aqui", dou uma volta ao recinto e deparo-me com o camarim de David Gilmour. Amanhã à noite estará ocupado.



Ao fim da tarde, enquanto virava canecas de cerveja croata num bar com vista panorâmica para a Arena (a foto fala por si) e trocava histórias de vidas Floydianas com um fã turco, David aparece para o soundcheck. Sem mais, começa a despejar temas do novo álbum, um depois do outro, seis no total, quatro deles ouço pela primeiríssima vez (só conhecia "Today" e Rattle That Lock"). Incrível, um concerto de borla! Dois destes temas conquistam-me desde logo, com solos directamente saídos do Olimpo (saberia mais tarde que dão pelo nome de "Faces Of Stone" e "In Any Tongue". Ouçam este último no vídeo em cima, é uma bomba.).
Depois vem "Wish You Were Here". Esta todos conhecem, é vê-los de telemóvel em punho, a gravar o momento. Cena normal nos nossos dias. Mas David ainda tem mais uma na manga. Pam... Pam... Pam... Pam... "High Hopes"! A minha reacção neste momento não deveria ser descrita aqui, sob pena de perder a imagem máscula perante as meninas. Mas que se foda. Mal ouvi o sino, desatei a chorar descontroladamente, cara escondida no braço da canadiana. "High Hopes" é a minha música, o meu elixir. Naquele momento, tudo valera a pena. O pé partido, o risco da viagem solitária para a Croácia, o frio que rapei em Zagreb, tudo fora compensado. O sentimento era um misto de deslumbramento e de "o que raio está a acontecer?!".
Para quem não acredita, o próprio David partilhou no Youtube um vídeo do ambiente na esplanada com vista para a Arena.



À saída da Arena, a carrinha que levava David e a sua mulher Polly Samson passa mesmo à minha frente. Primeiro contacto. Estive a uma janela de David! Comigo, carregava um LP do meu álbum preferido ("The Division Bell", para quem não sabe) na esperança que David pudesse parar para assinar. Nos olhos dele, o medo de ser engolido pela multidão. Já visualizava a capa do melhor álbum de todos os tempos assinada, mas havia muita gente. Não é desta.
Ainda assim, levo uma recordação da minha visita à Arena de Pula. É o que dá deixarem os fãs andarem pelo backstage antes dos concertos. Agora quero ver como é que a banda se orienta para fazer chichi durante o solo de 10 minutos do "Comfortably Numb".


Dia de concerto. Porra, já não era sem tempo, a expectativa já estava a dar cabo de mim. Na camarata do hostel, acumulam-se rapazes de todo o mundo, ali de propósito para o concerto: um uruguaio, um argentino, um russo, um espanhol, um inglês e um português. Nações Unidas Floydianas. Com todos abaixo dos 25 anos, sou o mais velho ali. Conto histórias do meu concerto em Paris de 2006, do Roger Waters em Wembley e ganho logo a admiração da plateia. Fossem todas as plateias assim tão fáceis.
À tarde, aproveito para um mergulho no Adriático de canadianas, para espanto dos transeuntes na praia. O mergulho de canadianas até foi fácil, a grande aventura foi chegar ao mar. Falaram-me maravilhas das praias na Croácia, mas esqueceram-se de me avisar que as praias eram de calhaus, óptimas para um pé partido. Adiante.

Hora do concerto. Já conhecendo os cantos à casa, finto a segurança e consigo entrar com uma garrafa de Jameson. Ouvir Pink Floyd sóbrio também é fixe, é verdade, mas para que é que eu haveria de fazer uma coisa dessas?
Vou directo com o meu LP para junto do camarim do David. Poucos minutos depois, aí está ele. David sai do camarim. Segundo contacto.
"DAAAAVID!", grito em súplica. David vira-se e vem na minha direção. Quase a chegar, a um metro apenas, David repara que naqueles parcos segundos se haviam juntado dezenas atrás de mim. David pára. Vira-se. Vai-se embora.
"FODA-SE! Estive tão TÃO perto! FODA-SE!", gritei num português que pareceu aos demais um qualquer dialecto hebraico. Ainda não é desta.

Procuro o meu lugar. Que maravilha: segunda fila, ainda a inspirar o fumo saído do palco. E logo chega David. Com todas as rugas à minha frente, juntando o ar frágil de um homem de 69 anos, com a robustez de quem teve que aturar o Roger Waters durante quase duas décadas. Terceiro contacto.
Porque o som e as imagens são, como sabemos, louder than words, deixo-vos com alguns dos momentos em Pula (desculpem-me, não consegui carregar os vídeos do Facebook aqui. Se me puderem ajudar, agradecia).


"Wish You Were Here"

"Money"

"High Hopes"


Astronomy Domine
Posted by Nuno Bento on Segunda-feira, 14 de Setembro de 2015

"Fat Old Sun"


"Sorrow"

"Run Like Hell"




"Time"

Pula foi especial. Não sabia nada da setlist e tinha feito um aviso de excomunhão a quem ousasse quebrar-me esse segredo. Mesmo assim, a setlist foi mais ou menos aquilo que eu estava à espera. Mas quando David arrancou com o BRRRRRUMMMM de "Sorrow", saltei da cadeira, num grito que deve ter sido audível no outro lado do Adriático (na verdade são dois gritos e são bem audíveis no vídeo em cima). Foi o meu momento da noite.
O concerto não foi perfeito, mas foi memorável. O David fartou-se de meter água, mas foi humano. Pula foi especial porque estive mesmo ali, ao pé de David, vi que ele é "apenas" um homem. E passei a amá-lo ainda mais por isso. Porque David Gilmour não é um homem qualquer, é um homem que cria coisas divinas.

Fui à Croácia e à Itália à caça de momentos. Este foi o primeiro.




3 comentários:

  1. Adorei ler isto, nem imaginas :)) três anos e tal a ler-te precisamente por posts como estes, da tour do Gilmour. A música na tua vida e a vida nas tuas palavras. O sentimento que tu pões nestas coisas e o entusiasmo e coração.

    Mas David ainda tem mais uma na manga. Pam... Pam... Pam... Pam... "High Hopes"! A minha reacção neste momento não deveria ser descrita aqui, sob pena de perder a imagem máscula perante as meninas. Mas que se foda. Mal ouvi o sino, desatei a chorar descontroladamente, cara escondida no braço da canadiana. "High Hopes" é a minha música, o meu elixir. Naquele momento, tudo valera a pena. O pé partido, o risco da viagem solitária para a Croácia, o frio que rapei em Zagreb, tudo fora compensado. O sentimento era um misto de deslumbramento e de "o que raio está a acontecer?!".

    :)) aqueles momentos na vida em que não existe mais nada, tudo o resto é paisagem. Conhecendo-te um bocadinho consigo imaginar a choradeira. E é bem justificada.

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    1. Thanks, Rita :)
      O instante em que comecei a ouvir os sinos no soundcheck foi um daqueles momentos de claridade, quando o subconsciente sobe à consciência e se dá a percepção de todas as coisas da nossa vida. Mas no fim de contas, é disso mesmo que fala o "High Hopes", não é? :)

      "Steps taken forwards, but sleepwalking back again"

      :)

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  2. :) sleepwalking back again (o eco :P)

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