sábado, 20 de outubro de 2012

José Régio - "Cântico Negro"

Ontem pensei em qual seria o meu poema preferido. O primeiro que me lembrei foi o "Cântico Negro", de José Régio. Este poema foi incluído no seu primeiro livro de antologia - "Poemas de Deus e do Diabo", publicado originalmente em 1925.

Já não lia o "Cântico Negro" há anos. Ontem procurei-o na net, imprimi-o num A4 e fechei-me no carro durante 2 minutos para voltar a ler o poema. Uma leitura, um take. O resultado foi este:



Já tinha saudades de ler poesia.
Hoje a palavra escrita dá lugar à palavra falada e a única música que se ouve são as palavras de José Régio. Fica aqui o fabuloso poema na íntegra:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos... 
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. 
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

3 comentários:

  1. Andas a praticar ;) Num só take, tiveste bem! :)
    Eu gosto muito de poesia, a língua portuguesa é perfeita para isso. Se for a pensar, o meu nick em tanto lado (na net) vem de um dos meus poemas preferidos do Álvaro de Campos: Apontamento :)
    Também sempre gostei desse do José Régio.

    Este teu post fez-me lembrar um poema do Eugénio de Andrade (outro grande senhor):

    As palavras

    São como um cristal,
    as palavras.
    Algumas, um punhal,
    um incêndio.
    Outras,
    orvalho apenas.

    Secretas vêm, cheias de memória.
    Inseguras navegam:
    barcos ou beijos,
    as águas estremecem.

    Desamparadas, inocentes,
    leves.
    Tecidas são de luz
    e são a noite.
    E mesmo pálidas
    verdes paraísos lembram ainda.

    Quem as escuta? Quem
    as recolhe, assim,
    cruéis, desfeitas,
    nas suas conchas puras?


    ;)

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    1. O Álvaro de Campos é provavelmente (nunca pensei a sério nisso) o meu poeta preferido na língua portuguesa. E é apenas um dos alter-egos do Fernando Pessoa, esse sim, na minha opinião, o grande génio de sempre da nossa língua. O "Apontamento" é fabuloso, presumo que venha daí o teu nick, não é? ;)

      Também gostei muito desse do Eugénio de Andrade, muito bom!

      Tenho que trazer mais poesia, um dia destes :)

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    2. O Fernando Pessoa era um génio! Para mim não há poeta maior que ele a escrever em português (ele e todos os heterónimos, quando era mais nova gostava especialmente do Alberto Caeiro).
      Sim, o nick vem daí :) descobri o "Apontamento" numa fase complicada da minha vida e assentava-me como uma luva.

      O Eugénio de Andrade também tem poemas lindíssimos! A Florbela Espanca igualmente... A língua portuguesa é das melhores coisas que existem, na minha modesta opinião :P

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